Crise de fé? Ou crise da fé?

Por mais que feche os olhos, mesmo que me faça à estrada – em fuga – a evidência é um mar enorme, contundente, que nos abala de supetão, e essa evidência – a de que é possível o que o mundo nos diz que é impossível – embaraça-me.

Trabalhei cerca de um ano na Câmara Municipal de Lisboa. Além de dezenas de responsabilidades, tinha como missão assessorar o Presidente Carlos Moedas e a Vereadora Laurinda Alves no âmbito da Jornada Mundial da Juventude. Acompanhei de perto os primórdios da construção deste grande evento: o polémico palco era ainda uma folha branca, a relva verde era uma lixeira castanha inabitável, a ponte ciclopedonal não fazia pontes com nada nem com ninguém. Tudo era medo, incerteza, confusão e dificuldade de comunicação clara. Ao mesmo tempo que cada uma das partes organizadoras tentava perceber o seu papel, permanecia um sorriso e a certeza de um caminho, que brotava de uma grande vontade: ainda que sem cálculos exatos, calculávamos a avalanche incontrolável que vinha sendo formada pela crença do efeito da chegada do Santo Padre.

Ao mesmo tempo que todas as semanas visitava aquele parque ainda embrião e entrava em todos os gabinetes da Câmara a pedir ajuda, em casa, por força, genica  e generosidade da minha mãe, começava a preparar-me para sobreviver enquanto família de acolhimento. Um dia, fui recebido com a seguinte noticia: “vou trabalhar para a Jornada Mundial da Juventude. Farei parte da equipa do alojamento dos Bispos”, disse a minha mãe. Passados uns meses, já longe da CML e do caos da JMJ, assistia à dedicação dela e de tantas pessoas que se ofereciam gratuitamente – abdicando de férias ou de um ordenado – como voluntários. Hoje, de fora mas por dentro, abro a janela do meu quarto e deparo-me, mesmo que não queira, com uma família totalmente entregue a uma causa: uma tia que todos os dias prepara o pequeno almoço, o almoço, o lanche e o jantar de peregrinos, uma avó que saiu de casa para que peregrinos ali dormissem e uma mãe se levanta da cama com um sorriso inesgotável, de cruz ao peito, abraçada aos peregrinos que invadiram a minha casa. Por mais que queira dormir descansado, os sussurros do entusiasmo alheio são o meu novo despertador.

É altura, por isso, de fazer uma publicação público-privada. Uma espécie de PPP sentimental. Sou católico desde que me conheço, e já o afirmei por diversas vezes. Mas nos últimos tempos o meu caminho tem sido mais seco e árido, um deserto estranho de fé e de alegria. Vivo, pelo que acima descrevi, com sentimentos mistos em relação a esta Jornada Mundial da Juventude. Por um lado, o que habita dentro de mim ou o cansaço de me ter dedicado até á exaustão representando a Câmara de Lisboa na JMJ; por outro, o que vejo à minha volta desde o dia 1 de Agosto. De coração dividido, não tenho outra saída senão a de me deixar contagiar.

Vivo, pelo que acima descrevi, com sentimentos mistos em relação a esta Jornada Mundial da Juventude. Por um lado, o que habita dentro de mim ou o cansaço de me ter dedicado até á exaustão representando a Câmara de Lisboa na JMJ; por outro, o que vejo à minha volta desde o dia 1 de Agosto. De coração dividido, não tenho outra saída senão a de me deixar contagiar.

É nesta inquietação que escrevo este texto aos solavancos, próximo do embate de me sentir sem aderência na estrada. Viro à direita e o que vejo? Jovens como eu, diferentes de mim, carregando uma concreta alegria difícil de nomear. Viro à esquerda (o que é raro em mim), e o que vejo? Mais jovens, mais jovens e mais jovens. Depois, como já não tenho qualquer hipótese de fuga, refugio-me em casa ou no futebol, enquanto ouço por todo o lado os cânticos, os gritos de entusiasmo e até as vozes trémulas de gente mais velha a festejar este gigante e surpreendente acontecimento. Por mais que feche os olhos, mesmo que me faça à estrada – em fuga – a evidência é um mar enorme, contundente, que nos abala de supetão, e essa evidência – a de que é possível o que o mundo nos diz que é impossível – embaraça-me. Detenho-me agora em frente ao espelho que são os outros, curvado e encarquilhado, profundamente interpelado por tão clara madrugada.

Claro que é possível fazer da vida uma varanda, ficar a uma distância de segurança para que nada me doa, e voltar a usar máscaras e viseiras. É possível ficar bem escondido debaixo dos lençóis ou estendido na praia porque Lisboa está uma confusão. É possível também escapar do protagonismo. Mas seria inverosímil (irrazoável, até) não reconhecer e não querer experimentar a alegria, e é isso que está em causa. A alegria concreta, real e verdadeira de quem caminha por estes dias em Lisboa. Dou por mim a querer ser assim como cada peregrino que vejo. Dou por mim a querer cantar caminhando. Com mais ou menos fé, mais ou menos defeitos, permeável a toda a maldade que persiste no mundo, mas profundamente alegre como confirmo que estes jovens são. Há quem acuse esta geração de andar perdida, camuflada em ilusões. Como explicar, então, uma adesão assim, maior que qualquer festival ou comício político? Num tempo de tantas dúvidas, isolamento, virtualidade, individualismo e concentração num bem-estar estritamente pessoal, em que o mundo duvida até de si próprio e o eu substitui o todo, a JMJ é, inegavelmente, um antídoto proposto por João Paulo II contra todas estas tendências contemporâneas que nos alienam da nossa responsabilidade. Este acontecimento, único e irrepetível em Lisboa e em Portugal – que nasce de um desejo de encontro puro com a inteireza do outro, nos seus defeitos e qualidades, diferenças e semelhanças – é real, passível de uma tangibilidade própria das coisas maiores. É a prova de que nós, jovens, carregamos inúmeras perguntas, queremos fazer caminho e ansiamos ardentemente por respostas à altura do que procuramos – o Bem, a Justiça, a Verdade e a Liberdade, de facto, movem-nos, e perante colossais perguntas  arriscamos a possibilidade de, juntos, fazer o caminho possível. Queremos repostas à medida do nosso coração. E, como referiu o Papa Francisco, caminhar é ouvir o nosso nome a ser chamado. Se a tolerância, a diferença, a liberdade, a multiculturalidade, a desigualdade e as injustiças são causas da nossa vida – ainda que ateus ou agnósticos convictos ou cidadãos enervados com o caos da cidade -, apenas um coração fechado a cadeado não se deixa comover com desmesurada alegria, entusiasmo e emoção. É por isso que não me posso demitir com esta demonstração de tamanha humanidade.

Este acontecimento, único e irrepetível em Lisboa e em Portugal – que nasce de um desejo de encontro puro com a inteireza do outro, nos seus defeitos e qualidades, diferenças e semelhanças – é real, passível de uma tangibilidade própria das coisas maiores. É a prova de que nós, jovens, carregamos inúmeras perguntas, queremos fazer caminho e ansiamos ardentemente por respostas à altura do que procuramos – o Bem, a Justiça, a Verdade e a Liberdade, de facto, movem-nos, e perante colossais perguntas  arriscamos a possibilidade de, juntos, fazer o caminho possível. Queremos repostas à medida do nosso coração.

Prestemos atenção, até porque a tentação de encaixotarmos as pessoas é uma enfermidade geral à qual não conseguimos escapar. Reparo que não há um rosto igual a peregrinar pelas pedras da cidade. Há com certeza um desejo comum entre tanta gente, mas as barreiras dos estereótipos e preconceitos desabaram à entrada de Lisboa. É a prova de que o desejo de um encontro verdadeiro com o outro, abraçando-o tal como ele é – sem maquilhagem -, se faz numa corrida apressada em conjunto, de mãos dadas. Uma corrida de onde nasce a empatia, a fraternidade, o respeito pela diferença, a sede de construir uma comunidade e o confronto com a nossa própria natureza, no que carregamos de individual e universal em nós.

Pergunto-me, ao passear pela Lisboa da qual não fui capaz de fugir, o que guardam estes jovens para experimentar tanta alegria? O que os preserva de sorriso rasgado diante de um mundo que nos fere por dentro e por fora? Que alegria é esta, vibrante, mas sóbria; desmedida, mas serena; intensa, mas consciente; ingénua, mas plena de razoabilidade; individual e, ainda assim, tão partilhada?

Pergunto-me, ao passear pela Lisboa da qual não fui capaz de fugir, o que guardam estes jovens para experimentar tanta alegria? O que os preserva de sorriso rasgado diante de um mundo que nos fere por dentro e por fora? Que alegria é esta, vibrante, mas sóbria; desmedida, mas serena; intensa, mas consciente; ingénua, mas plena de razoabilidade; individual e, ainda assim, tão partilhada?

Das duas, uma: ou me deixo livremente interpelar com a oportunidade única que Lisboa me apresenta, ou, agarrado à prisão da minha humana condição, imensamente frágil, decido rejeitar ficar aturdido por ver que afinal é possível carregar a esperança de uma desmedida alegria.

Ainda assim, é concebível não perder o ceticismo, a indignação justa ou a solidariedade perante a desgraça dos abusos sexuais. É legítimo o escrutínio do papel do estado neste tipo de eventos, da utilização e aproveitamento dos dinheiros públicos. “Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar”. É até recomendável a diversidade de quem, humanamente tocado pelo ímpeto social, queira esmiuçar, questionar ou criticar com honestidade realidades que funcionam melhor com o nosso ponto de interrogação. Mas a mesma honestidade, desejo de verdade e justiça, a mesma entoação com que bradamos a nossa repulsa diante de temas tão sensíveis, pode ser a mesma com que deixamos inflamar o nosso olhar, livre e aberto, quando confrontados com a alegria que afinal todos suplicamos e desejamos para nós e para os outros.

Mas a mesma honestidade, desejo de verdade e justiça, a mesma entoação com que bradamos a nossa repulsa diante de temas tão sensíveis, pode ser a mesma com que deixamos inflamar o nosso olhar, livre e aberto, quando confrontados com a alegria que afinal todos suplicamos e desejamos para nós e para os outros.

Posso não participar em nenhum evento. Posso até sair da cidade. Posso continuar revoltado e triste. Mas a minha liberdade cairia em desgraça se me visse usá-la para virar as costas a tudo isto e fazer sucumbir o que resta da candura humana em mim.

 

Fotografia:
Autor – Luís Nobre Guedes

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.