Um dos livros que mais me marcou até hoje foi A Era do Vazio – ensaio sobre o individualismo contemporâneo, de Gilles Lipovetsky. Li-o em 1989, ainda à entrada da minha vida adulta profissional, e com esse livro despertei para os contornos – e para os perigos – da sociedade pós-moderna.
Lipovetsky mostra a desagregação da sociedade que resulta do “salto em frente da lógica individualista” quando “o direito à liberdade, em teoria ilimitado, mas antes circunscrito à economia, à política e ao saber, conquista agora os costumes e o quotidiano”. Deste modo, “viver livre e sem coação, escolher sem restrições o seu modo de existência” passa a ser o “facto social mais significativo quanto ao nosso tempo.” Lipovetsky explica e exemplifica a apatia, o vazio, a insatisfação, a ansiedade e a infelicidade crescentes deste novo Homem pós-moderno; um Homem obcecado pelo consumo material, narcisicamente auto-centrado, esvaziado de relações sociais sólidas, com convicções cada vez mais fluidas; um Homem que vive na era da sedução, do efémero, dos direitos sem deveres, em permanente deriva ética e moral.
Lembrei-me deste livro por ocasião da morte de Roger Scruton em 12 de janeiro. Muito se escreveu nas últimas semanas sobre este filósofo que tão brilhantemente defendeu o conservadorismo anglo-saxónico – o conservadorismo-liberal herdeiro do pensamento de Edmund Burke.
Entre nós, aconselho o excelente texto de Miguel Granja no Observador, no qual se explica como a civilização ocidental se baseia em conceções da verdade, da beleza e da bondade que foram sendo apuradas através de inúmeras gerações: “A ideia do verdadeiro escoltando a nossa busca cognitiva (interior e exterior), a ideia do bom norteando a nossa oscilação ética (privada e pública) e a ideia do belo inspirando a nossa vocação estética (natural e artística).” E aí se faz tributo à defesa inabalável por Scruton da civilização ocidental, dando voz a um conservadorismo moderno que escolhe conservar para as gerações futuras aquilo que de verdadeiro, bom e belo as gerações passadas do mundo ocidental foram construindo.
Miguel Granja cita Scruton, “o conservadorismo é sobre conservar as coisas: (…) as coisas boas que admiramos e valorizamos, e que, se não cuidarmos delas, podemos perder”, para explicar que “conservar não é paralisar: é impedir a deterioração” e que “conservar é apostar no futuro” (ao leitor interessado em aprofundar este conceito moderno de conservadorismo aconselho, por exemplo, esta interessante conversa entre Roger Scruton e Douglas Murray).
Na minha opinião, o que é difícil é ser verdadeiramente livre num mundo desprovido de referências, de limites.
Um dos ataques mais frequentes à posição filosófica (e política) conservadora é a ideia de que o indivíduo é menorizado, face à arrogante presunção de que a tradição o deve condicionar no exercício da sua liberdade. Uma vez clarificado o que é ser conservador – preservar o verdadeiro, belo e bom, oferecendo-o às gerações futuras – eu penso precisamente o contrário. O que me parece arrogante é presumir que cada indivíduo, e portanto a atual geração, sabe mais do que todos aqueles que o precederam, e que se pode apostar tudo na liberdade de escolha, sem referências nem limites. Ser conservador é ser profundamente humilde: é viver aceitando que se sabe pouco.
Na minha opinião, o que é difícil é ser verdadeiramente livre num mundo desprovido de referências, de limites. Parece-me que ninguém consegue escolher quando está à deriva, não sabendo distinguir alternativas, ordenar escolhas. Ninguém é livre sem critérios, sejam eles éticos, morais, políticos e económicos (a cada tipo de escolha, o seu nível de critério).
Daí a minha perplexidade perante tantos que proclamam um liberalismo radical, libertário, que faz tábua rasa do passado e dá o primado absoluto ao indivíduo. Parece-me que continuam a preparar terreno fértil para um relativismo pós-moderno cada vez mais radical, e cada vez mais alastrado e entranhado na sociedade ocidental; ao qual se segue a instrumentalização das mentes, e no limite totalitarismos morais, sociais, políticos, económicos. Idolatrando o indivíduo, destroem as suas referências e portanto a sua capacidade de discernimento: levam-no a aceitar cada vez mais a ideia de que tudo é igual, tudo é igualmente verdadeiro, bom e belo.
Parece-me que a única forma de evitar que as sociedades caiam nos extremos da desagregação ou do dirigismo estatal – e a história parece mostrar que cada um destes polos leva pendularmente ao outro – é valorizar a tradição para defender a liberdade dos indivíduos. Daí o papel crucial que, no conservadorismo, se dá aos grupos intermédios, como a família, a paróquia, o bairro, o clube, etc.
E aqui volto a Lipovetsky. O que fica, quando retiramos as referências dadas pela tradição e hiper-valorizamos o indivíduo? Fica um vazio.
O indivíduo pós-moderno vive esvaziado de sentidos últimos e por isso anda perdido e vulnerável. O vazio deixado pela tradição tem vindo a ser sub-repticiamente preenchido por agendas minoritárias. A tradição, consensualmente depurada através de gerações, tem vindo a ser substituída por ideias ex-novo propostas por alegados defensores de minorias que supostamente necessitam de proteção.
E aqui chegámos, a um mundo ocidental que se envergonha da sua cultura e civilização. Um mundo ocidental em que se multiplicam as políticas de engenharia social. Um mundo ocidental em que o relativismo moral é consagrado na lei, e em que a lei substitui a ética e a moral.
Tanto o quisemos promover na sua liberdade, que o desorientámos e o deixámos na mão dum dirigismo estatal controlado por minorias que nada têm a ver com as escolhas sabiamente feitas pelas inúmeras gerações passadas.
Uma interessante chave de leitura para esta realidade é dada por pensadores como, por exemplo, Douglas Murray e Jordan Peterson: desprovida de qualquer alternativa económica ao capitalismo, a corrente filosófica marxista interiorizou o nihilismo pós-modernista para se focar na engenharia social, quer na academia quer na política. Tudo é visto (como sempre foi, para esta corrente) à luz de uma lógica de poder e opressão: onde antes o marxismo falava de luta de classes, agora fala de luta das minorias contra os seus (supostos) opressores. Daí a obsessão com o politicamente correto, a ideologia do género, o feminismo, a luta contra o racismo, etc…
Entretanto, a sociedade do Homem comum, maioritário, vai-se descaracterizando, dissolvendo, perdendo em fragmentações que na maior parte das vezes são artificiais ou – isso seguramente – estão empoladas e absolutizadas.
Vemos agora o mal que fizemos ao indivíduo com o bem que lhe queríamos. Tanto o quisemos promover na sua liberdade, que o desorientámos e o deixámos na mão dum dirigismo estatal controlado por minorias que nada têm a ver com as escolhas sabiamente feitas pelas inúmeras gerações passadas. Soubéssemos recuperar a tradição, conservando o que de verdadeiro, belo e bom a nossa civilização tinha, e viveríamos bem mais felizes, porque aí sim poderíamos exercer conscientemente a nossa liberdade individual. Só sabendo conservar as coisas boas herdadas – que demoram tanto a construir e tão pouco tempo a destruir – poderemos ser mesmo livres para escolher coisas novas ainda melhores.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.