Confiança em Deus

A experiência da primeira semana parte da confiança no amor de Deus e da esperança no mundo e em si próprio.

Muitas vezes me perguntei porque é que Santo Inácio não quis que Pedro Fabro (um dos primeiros jesuítas) fizesse os Exercícios Espirituais imediatamente. Isto é, fê-lo esperar quatro anos antes até achar que Fabro estava pronto para os fazer. A razão que o levou a esta espera é, na verdade, muito importante.

Muitas vezes referimo-nos aos Exercícios Espirituais nos termos tradicionais da espiritualidade distinguindo uma via purgativa, uma outra iluminativa e a terceira unitiva. Creio que para a nossa sensibilidade contemporânea corresponde melhor às intuições de Inácio olhar para o percurso dos Exercícios como um tempo em que se procura aprofundar uma relação pessoal (não individual!) com Deus. O método dos Exercícios está pensado para nos conduzir a uma relação cada vez mais familiar com Deus.

Santo Inácio considerava que a primeira semana dos Exercícios pode ser proposta a todos. Esta pode, na verdade, ser proposta diversas vezes antes que se continue o percurso para as outras semanas. A primeira semana tem como objectivo aquilo que na espiritualidade clássica se diz da via purgativa: consciência e posterior arrependimento dos nossos pecados. Quem faz os Exercícios entra em primeira semana pedindo a Deus que seja Ele mesmo quem lhe revela os seus pecados. De facto não sou eu, enquanto exercitante, que simplesmente digo a Deus os meus pecados e lhe peço perdão; o objectivo não é chegar ao fim da semana e descarregar o saco dos pecados. O objectivo é, estando debaixo do olhar paternal e misericordioso de Deus, que deixemos que seja Ele que nos revele a origem dos nossos pecados e nos mostre onde é que a nossa relação com Ele deixou de ser expressão de amor filial. É, na verdade, Ele que nos mostra quando e onde deixámos de colocar no centro daquilo que somos esta relação de filho ou filha muito amados e Lhe fechámos a porta.

O pecado tem como consequência prática na nossa vida uma condição de cegueira, isto é aquilo que Inácio chama de afectos desordenados. São estes que nos impedem de sermos realmente conscientes do nosso pecado e das suas consequências para nós próprios e para os outros. Só Deus tem um olhar que parte totalmente do Amor. Só Ele nos vê integralmente a partir do Amor. Ninguém, nem nós próprios nem a pessoa que mais nos ame na vida, tem um olhar tão puro e profundo capaz de ser sensível à nossa verdadeira beleza escurecida pelo pecado. Por isso só Deus nos pode dizer de onde vem o nosso pecado e onde nos levou.

Inácio sabia bem que para que Pedro Fabro pudesse fazer verdadeiramente o percurso dos Exercícios, teria primeiro que purificar a sua imagem de Deus para que pudesse então experimentar Deus como Amante incondicional libertando-se de si mesmo para se colocar nas Suas mãos.

Durante a primeira semana, Inácio quer que o exercitante conheça experiencialmente o perdão e a misericórdia de Deus. No colóquio do primeiro exercício desta semana, o exercitante dirige-se a Deus “que tanto amou o mundo que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16) e, “imaginando Cristo diante de si, pregado na cruz”, O possa ver e “em tal estado e assim pendente na cruz, [e assim] discorrer pelo que se me oferecer” (EE53). O tom com que Inácio propõe este e os outros colóquios finais de cada oração ou exercício é aquele em que um amigo fala ao seu amigo: uma conversa íntima, de coração a coração.

A experiência da primeira semana parte da confiança no amor de Deus e da esperança no mundo e em si próprio. É um obstáculo real para continuar os Exercícios a ausência de uma relação viva, existencialmente pertinente, com Deus como Amor incondicional. A experiência dos Exercícios pressupõe, da parte de quem os faz, uma atitude de confiança neste Amor incondicional de Deus, ainda que de um modo germinal, que permita o desejo sincero que seja Deus quem nos revele os pecados. Afirmar que só com esta postura inicial de uma confiança real e vital em Deus possam ser feitos os Exercícios não significa que para os fazer seja necessária uma imagem de Deus já totalmente purificada, mas que exista pelo menos o desejo de desejar que seja Deus quem nos revela o nosso pecado e quem nos purifica.

Pedro Fabro era muito atacado pelos escrúpulos, uma realidade que Inácio bem conhecia: também ele passou por este problema durante o processo da sua conversão. Basta recordar como, no início desse processo, ele achava sempre que não se tinha confessado bem, e que não tinha dito todos os detalhes dos pecados cometidos. E assim confessava-se constantemente dos mesmos pecados. Este afecto desordenado pode ter na sua raiz, por um lado uma imagem de Deus não como um Pai misericordioso, mas simplesmente como um juiz justo e escrupuloso e, por outro lado, revela a incapacidade de superar o próprio amor quer e interesse (EE 189) que nos leva a querer ser um activista na própria relação com Deus em vez de se deixar amar “como criança saciada ao colo da mãe” (Sal 131). Inácio sabia bem que para que Pedro Fabro pudesse fazer verdadeiramente o percurso dos Exercícios, teria primeiro que purificar a sua imagem de Deus para que pudesse então experimentar Deus como Amante incondicional libertando-se de si mesmo para se colocar nas Suas mãos.

Às vezes esquecemo-nos que Jesus Cristo morreu por nós na cruz; às vezes esquecemo-nos que aquilo que o move é o amor integral por cada um de nós. Acreditamos realmente que alguém que dá a vida por um outro se preocupe por algo que não seja o seu bem integral? O Deus de Jesus Cristo é um Pai misericordioso que não pensa noutra coisa que não seja a salvação de cada um dos seus filhos.

Fotografia:  Andrew Sharples – Unsplash

Texto originalmente publicado no essejota.net da Companhia de Jesus. Este site já não se encontra disponível.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.