Batismo em Omaha

Molhar tranquilamente os pés na praia de "Omaha" foi como um batismo da minha memória e identidade, que me fez agradecer e questionar a nossa Europa, "livre" mas pouco disponível para acolher os desembarques dos nossos dias.

Num tempo em que enfrentamos uma extrema fragmentação e uma pulverização geral de conflitos e tensões, dou por mim a viajar pela memória, que infelizmente parece ser tão curta nas nossas sociedades. Nasci a 7 de junho de 1974, pouco depois da revolução pela liberdade e democracia em Portugal, trinta anos depois do dia D+1, marcado pela operação Omaha, nome de código dado pelos Aliados à operação do desembarque para libertação da ocupação nazi, iniciada no dia 6 de junho de 1944. A nossa liberdade deve-se a tantos esforços pela Liberdade… Poder este verão molhar tranquilamente os pés na praia de “Omaha”, olhando os meus sobrinhos que mergulham livre e alegremente lá longe, foi como um batismo da minha memória e identidade, que me fez agradecer e entregar a nossa Europa “livre” mas pouco disponível para acolher os desembarques dos nossos dias.

A nossa liberdade deve-se a tantos esforços pela Liberdade… Poder este verão molhar tranquilamente os pés na praia de “Omaha”, olhando os meus sobrinhos que mergulham livre e alegremente lá longe, foi como um batismo da minha memória e identidade, que me fez agradecer e entregar a nossa Europa “livre” mas pouco disponível para acolher os desembarques dos nossos dias.

Margarida Alvim

A minha geração de europeus (da Europa ocidental) já não passou pelos horrores da guerra, mas a minha Mãe, francesa, teve de fugir dela. Voltar à nossa História, pessoal e civilizacional, é um exercício fundamental para nos podermos encontrar, unificar e questionar, com uma atitude agradecida e sentido critico num mundo onde tudo parece ser possível em nome da Liberdade e da democracia, ao ponto de nos apoderarmos e tornarmo-nos pequenos e grandes ditadores, esquecendo o seu fim, que é o Bem Comum. É um exercício que provavelmente nos ajudaria a acolher os que hoje desejam desembarcar todos os dias na Europa, também em busca de paz e liberdade.

Voltar à nossa História, pessoal e civilizacional, é um exercício fundamental para nos podermos encontrar, unificar e questionar, com uma atitude agradecida e sentido critico num mundo onde tudo parece ser possível em nome da Liberdade e da democracia, ao ponto de nos apoderarmos e tornarmo-nos pequenos e grandes ditadores, esquecendo o seu fim, que é o Bem Comum.

Margarida Alvim

Vários acontecimentos, não premeditados, conduziram-me a esta viagem aos acontecimentos dos anos 30/40, fazendo ao longo dos últimos meses uma memória partilhada da segunda guerra mundial, terminada há apenas 73 anos. Em novembro passado fui à Alemanha, precisamente a Nuremberga visitar um irmão da minha Mãe, casado com uma alemã no pós-guerra. Já este ano, em maio, estive na Polónia, para a ordenação sacerdotal de um amigo beneditino da Abadia de Biskupow. Nesta ocasião, visitámos os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau. Visitámos também Cracóvia e a terra natal do Papa João Paulo II, Wadovice. Por fim, neste agosto, as férias levaram-me à Normandia. Na verdade, não foram simples férias de descanso e turismo, foi uma peregrinação familiar às origens, à aldeia dos meus avós, recuperando memórias e identidade. O que era um exercício pessoal para mim e para a minha família, foi inevitavelmente alargado à nossa memória e história comum, como europeus, como Humanidade.

A visita começou então na Alemanha, o lado de lá da guerra que pouco ouvimos. É já difícil imaginar a Nuremberga quase totalmente destruída de 1945. O passeio pelas suas ruas, praças e Igrejas ficou-me marcado sobretudo pelas histórias partilhadas em paralelo pela minha Tia, originária do nordeste da Alemanha, que aos 3 anos teve de partir a meio da noite, sem nada, a pé com a Mãe, fugindo dos russos. Já durante a visita que se seguiu, à Polónia, pensava na relação entre estes dois países e reconciliação na História, também através de Karol Wojtyla e Joseph Ratzinger, futuros Papas João Paulo II e Bento XVI.

Marcou-me muito o contacto mais próximo com a história da Polónia e do Papa João Paulo II, que gravou de forma tão redentora a Igreja e o Mundo. O Papa que vinha de um país distante, para lá da cortina de ferro. Um Papa tão ligado a Fátima e a Portugal. Entendi melhor a sua força e a forma como sempre nos devolvia, ao longo do seu pontificado, a memória da sua terra natal, que representa muito mais que um lugar, representa toda uma história de fé, cultura, fidelidade, resistência, humildade. Força humilde, que se sente no povo polaco.

O périplo desta Memória alargada terminou em França, na visita às minhas raízes normandas perto de Avranches (bombardeada pelos Aliados a 7 de junho de 1944), numa pequena aldeia na baía do Monte Saint Michel, chamada Saint Leonard. Ao longo dos dias de passeio, que integraram as praias do desembarque mais a norte, era pacificador ir vendo aparecer nas curvas das pequenas estradas de campo, por detrás das colinas bordeadas de vacas, milheirais e macieiras, o Monte, com a Abadia Beneditina do século X, defendida pelo arcanjo São Miguel. Muito nos tem protegido, o arcanjo, referiam-nos os amigos que reencontramos.

“A queda, primeiro, do nazismo e, depois, da União Soviética foi registo de uma falência: mostrou o absurdo total da violência em grande escala como era teorizada e praticada por aqueles sistemas. Quererão os homens ter em conta as dramáticas lições que a história lhes oferece?

João Paulo II

De volta a casa, lembrei-me do último livro do Papa João Paulo II, Memória e Identidade, que tenho andado a reler. Um diálogo denso que aprofunda e justifica as minhas cogitações. “A queda, primeiro, do nazismo e, depois, da União Soviética foi registo de uma falência: mostrou o absurdo total da violência em grande escala como era teorizada e praticada por aqueles sistemas. Quererão os homens ter em conta as dramáticas lições que a história lhes oferece?… Todo este mal existe no mundo também para despertar em nós o amor, que é dom de si próprio no serviço generoso e desinteressado a quem foi visitado pelo sofrimento.”

“Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem”, diz-nos S. Paulo na carta aos Romanos (12, 21). Ao lado do mal nunca faltou o bem, e também o século XX é disso evidência. Sim, que a memória do Bem nos ilumine para seguir em frente nas dificuldades e nos faça mais agradecidos, abertos à vida e disponíveis para dar o justo lugar a cada pessoa e circunstância.

Em cada um destes lugares (Alemanha, Polónia, França) e sobretudo pessoas revisitadas, testemunho tantos “pequenos” frutos concretos que germinaram no meio do mal! Um casamento, como muitos que aconteceram nesses tempos e que ajudaram a reconciliação basilar entre povos. Uma Abadia com onze Monges, num país onde os religiosos foram brutalmente e longamente silenciados. Um lugar cheio de tranquilidade e paz, que me fala da paz que a minha Mãe nos transmitiu, ela mesma representando um esforço da Vida, que sempre vence. Acredito que se todos caíssemos na conta do esforço de tantas vidas e lugares que sustentam a nossa vida até hoje, seriamos mais diligentes a não perder tempo com os males de que tantas vezes nos queixamos, procurando constantemente e incansavelmente o Bem. O peso das palavras seria diferente, já não estaríamos tão prontos a reclamar o que é justo ou injusto, o que me é devido, o que me falta. Não construiríamos tantas barricadas, faríamos mais pontes. Afinal, tantos refugiados existiram na Europa nesse tempo não distante.

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Auschwitz, Polónia - Clementa Moreno/Shutterstock

O exercício de Memória é caro a S. Inácio de Loyola, que nos seus Exercícios Espirituais insiste em que nos imaginemos nas cenas evangélicas propostas, ordenando e unificando a nossa razão, vontade e coração. Sugere também a aplicação dos sentidos como modo de oração, algo que se entende melhor depois de passar nestes lugares. Estar nos pavilhões e nas celas de Auschwitz onde ainda parece pairar o cheiro dos crematórios e câmaras de gás; visitar a cela onde sucumbiu de fome São Maximiliano Kolbe, Dando a vida por um pai de família que deveria morrer no seu lugar; experimentar a força e a fé do povo polaco e do “seu” Papa; ouvir o silêncio que reina no cemitério americano na Normandia, onde milhares de cruzes com nomes concretos alternam com estrelas de judeus e cruzes de soldados desconhecidos; celebrar em Igrejas quase totalmente destruídas e hoje reconstruidas; ouvir as histórias que amigos e família contam relativas aos seus pais e avós; entrar no mar onde no dia D morreram tantos soldados em nome da paz e da liberdade… da nossa Liberdade.

Acredito que a marca que sinto, a sentem também os meus sobrinhos, com esta aula tão diferente de história, da nossa História coletiva. Regressando a casa, temos sobretudo bom terreno para continuar a dar voltas a esta Memória comum. Acredito que todos podemos fazer e promover este exercício, individual e coletivo, de memória agradecida, cultivando assim a paz e a justiça.

Iniciava este artigo a partir da vida fragmentada, que nos divide e destrói, que nos faz viver à defesa e de costas voltadas. Deixo para terminar o testemunho de Etty Hillesum (jovem holandesa de origem judaica, que morre em Auschwitz) no seu Diário Espiritual: “Temos de desbravar dentro de nós grandes planícies de tranquilidade, cada vez mais tranquilidade, para poder irradiar aos outros. Quanto mais tranquilidade houver nas pessoas, mais tranquilidade haverá também neste mundo agitado.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.