“Sempre ouvimos dizer que Calígula tratou de esconder A Odisseia de Homero por representar um desejo de liberdade. Talvez desejasse restringir o espírito do herói grego encarnado por Ulisses.”
Máximo Huerta, 2024, 17. [1]
A frase que abre este texto remete-nos para uma prática tão antiga quanto contínua: a ocultação, alteração ou destruição de panfletos, discursos, poesias ou livros – de matriz ficcional, filosófica, religiosa, científica ou outra, justificada, a maioria das vezes, pelo carácter subversivo que alguém viu neles. Esse alguém tem variados rostos, ainda que seja o político e o moral – nos seus amplos espectros – que a nossa memória logo invoca. Não me refiro apenas a rostos individuais, mas principalmente a rostos institucionais, muitos deles com prestígio intelectual.
Em consonância, são incalculáveis os casos de autores, mas também de editores, livreiros e leitores a quem calharam – e calham – processos judiciais, prisão, exílio e morte. Voltaire viu-se por várias vezes encarcerado na Bastilha, numa delas por ter publicado uns “simples” versos; Madame Bouvary arrastou Gustave Flaubert para tribunal, num bem triste julgamento; o caso Dreyfus, vertido no J’accuse, estragou a vida a Victor Hugo; Salman Rushdie carrega, há três décadas, uma sentença capital derivada d’ Os versículos satânicos e escapou por pouco à raiva de um atacante. Estes exemplos, invocados ao acaso, dão uma pálida ideia de um todo infindável.
É certo que a censura – é disso que se trata – pode ter feições menos trágicas, pelo menos na sua aparência. Uma assaz comum é a tentativa de manter ad aeternum certos modos de funcionamento social, como ilustra Jorge Amado em Gabriela, Cravo e Canela, com a reação do pai de Malvina quando soube que ela lia livros que não eram “de colégio”, que “desencaminham”, como O crime do Padre Amaro. Outra feição, mais pueril e até compreensível, é o evitamento daquilo que toca crenças, inibições e outras peculiaridades humanas, por exemplo, quando Dom Fabrizio, O Leopardo, na habitual leitura para a família reunida num dos requintados salões da casa Salina, saltava expressões ou passagens que poderiam causar embaraços, a começar por si mesmo. A leitura que se recomenda ou que se faz em público tem destas coisas.
Estas últimas palavras não têm a intenção de relativizar a prática em causa, mesmo que ela não seja sempre ostensiva e violenta, podendo, até, evitar incómodos e constrangimentos. O que está publicado deve manter-se publicado, mesmo quando – parafraseando o título de Benjamin Wiker – contribuiu para estragar o mundo ou não ajudou nada… Leia-se esta declaração como ironia pois se é verdade que há escritos iníquos não se segue que eles imprimam esse carácter a quem os lê, como é verdade que há gente iníqua capaz de adaptar ao seu carácter as leituras que faz. George Orwell, no seu Mil novecentos e oitenta e quatro, e Ray Bradbury, no seu Fahrenheit 451, explicaram bem os perigos de reescrever e queimar o que está publicado, ainda que isso seja determinado pelos melhores motivos, o que não é o caso nas distopias que criaram.
Precisamos desta ideia no presente, quando um novo tipo de censura – “beneficente” ou “positiva” – ganha protagonismo sem causar a estranheza que devia. Estamos prontos a condenar a censura política e moral, porém aceitamos esta de boa mente, talvez por não a reconhecemos como tal, mas como um ato protecionista.
De facto, as duas expressões reportam-se, no essencial, ao arranjo da comunicação – no caso, escrita – de modo que ela não fira susceptibilidades históricas, identitárias, religiosas de povos, culturas e indivíduos. Evitam-se temas, palavras que possam, por um lado, incomodar, discriminar, ofender os que se têm por mais vulneráveis e, por outro lado, perpetuar estereótipos que lhes estejam associados. Há aqui, portanto, uma bondade inerente que é proporcionar o “bem-estar” emocional a pessoas e grupos que contam, na sua circunstância de vida, com alguma fragilidade.
Evitam-se temas, palavras que possam, por um lado, incomodar, discriminar, ofender os que se têm por mais vulneráveis e, por outro lado, perpetuar estereótipos que lhes estejam associados. Há aqui, portanto, uma bondade inerente que é proporcionar o “bem-estar” emocional a pessoas e grupos que contam, na sua circunstância de vida, com alguma fragilidade.
Não obstante, há que reconhecer que este safetyism – que não se pode confundir com a postura desejável da pessoa bem formada e cordata – tem tido repercussões bem visíveis: supressões e adaptações de todo o tipo de manifestações literárias, mesmo das que julgámos estar além de qualquer suspeita, como é o caso dos contos tradicionais para a infância.
As consequências estão à vista: para o escritor e para o editor, uma delas é a autocensura, querendo publicar tenderão a escrutinar as suas opções em função das regras vigentes, que incluem a avaliação prévia de “públicos sensíveis”; para o leitor, uma delas é tornar o seu pensamento compatível com a linha de pensamento que se vai construindo e estabilizando. Para todos, o resultado é o alheamento do sentido de liberdade, um dos fins mais estimáveis da leitura.
A leitura – sobretudo se for plural e elevada – cria dissonância e concordância, desassossega e apazigua, dá forma ao horrível e ao belo… enfim, confronta-nos com a (nossa) própria humanidade, com o que nela há de pior e de melhor, com o que ela tem de diverso e de uniforme. Abre-nos janelas para o que ainda não faz parte de nós, mas que poderá passar a fazer.
Pelo que acima disse, e situando-me na escola, para se decidir as leituras a oferecer às crianças e aos jovens, os professores precisam, claro está, de atender à sua idade e evolução, mas isto é diferente de lhes negar o acesso a textos que esbarrem na intenção “beneficente” ou “positiva”.
Volto ao autor que citei: “sobre a literatura paira a sombra de proibir (…) os que temem que se divulgue aquilo que possa incitar a pensar, que dê poder”. Como educadores, devemos fazer tudo o que pudermos para nos afastarmos desta sombra, afastando também aqueles que estão ao nosso cuidado, ainda que saibamos de antemão que ela há-de persistir. Afinal, tudo leva a crer que esta é mais uma das tensões que marcam a condição humana.
Referências:
[1] Huerta, M. (2024). Más libros, más libres. In Tena Fernández, R. & Soto Vázquez, Censura infantojuvenil en la literatura y educación europea. Dykinson
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.