A morte da ideologia?

É pois tempo de trazer os ideais de volta à política. Se queremos alargar os horizontes da nossa cidadania, não podemos deixar a ideologia morrer.

Na sua campanha às eleições presidenciais francesas, Emmanuel Macron sugeriu que a distinção entre “Esquerda” e “Direita” é coisa do passado e que uma boa agenda política será imune a preferências de índole ideológica. Esta tese, subscrita por pensadores de diversos quadrantes, vai ao encontro da crescente dificuldade que muitos cidadãos experienciam ao procurar diferenças assinaláveis nas políticas dos diversos governos. O que poderá estar na origem do eclipse da ideologia? Será que a ideologia já não é necessária?

As explicações apresentadas são de diversa ordem. Em primeiro lugar, foi dito que o final da guerra fria e a queda do comunismo aniquilaram o próprio propósito do debate ideológico. Com a vitória intelectual do capitalismo e da democracia liberal, as questões que hoje se colocam são, fundamentalmente, de carácter operacional – isto é, como fazer as economias capitalistas funcionar eficientemente e como aperfeiçoar as instituições e os procedimentos democráticos. Trata-se da hipótese do “fim da história”, celebremente proposta por Francis Fukuyama.

Em segundo lugar, tem-se dito que as evoluções das últimas décadas – nomeadamente, a erosão das soberanias nacionais, a concorrência à escala global e o envelhecimento das populações europeias – reduziram o leque das opções políticas à disposição dos governos. Segundo esta tese, tornam-se inevitáveis medidas tais como a privatização das empresas públicas, a flexibilização do mercado laboral e a redução das barreiras contra o comércio livre, anteriormente sujeitas a fervorosos debates ideológicos e que hoje proliferam da esquerda à direita. É a hipótese da “ausência de alternativas”.

Em terceiro lugar, tem-se afirmado que uma moral crescentemente individualista, aliada à esperança depositada na técnica e no progresso, tem vindo a afastar o cidadão do espaço público e a destruir o sentido comunitário a que muitas das grandes ideologias apelavam. Esta perspetiva destaca aspetos como a crescente abstenção eleitoral, a dramática redução dos níveis de sindicalização dos trabalhadores e os elevados índices de evasão fiscal. Poderemos chamar-lhe a hipótese da “erosão da solidariedade social”.

Com os seus traços de verdade, estas leituras escondem uma realidade mais profunda. A ideologia morreu – ou, em bom rigor, anda adormecida – sobretudo por falta de coragem e de visão política. É raro encontrar um decisor político que se comprometa com um ideal de sociedade, apresentando um projeto de longo-prazo para a sua comunidade. Os Parlamentos têm vindo a transformar-se em fóruns de tópicos soltos e de soluções de curto-prazo, sem que qualquer visão de conjunto lhes esteja subjacente. Ora, a ideologia, entendida como um conjunto de valores e princípios que norteiam a ação política, serve precisamente para enquadrar as escolhas governativas e para lhes oferecer uma justificação política. Como tal, a ideologia deve preceder e orientar essas escolhas.

Os grandes dilemas que as comunidades políticas hoje enfrentam não constituem meros problemas técnicos, que possam ser solucionados por referência a determinados factos-chave ou manuais de best practices. As desigualdades crescentes entre ricos e pobres, precários e estáveis, globalizados e isolados, requerem uma leitura que vá para além dos modelos económicos e do calendário eleitoral. Por outras palavras, todos estes “factos” requerem uma interpretação política, que não pode fazer-se sem um mapa de valores e bens prioritários. Se é certo que a ortodoxia de algumas ideologias as tornou incapazes de olhar para além de si próprias, a recusa em enquadrar as escolhas dos governos num pano de fundo minimamente consistente gera a arbitrariedade própria de um barco sem leme.

A política, enquanto advento do futuro coletivo, não pode limitar-se a oferecer soluções de curto-prazo. A urgência do imediato não deve esgotar a atenção dos cidadãos nem consumir o sempre limitado capital político que os titulares de cargos públicos têm para promover a mudança. É certo que as instituições políticas têm também de dar resposta a desafios do dia-a-dia que exigem soluções urgentes. No entanto, estas tarefas têm de ser encaradas como instrumentais numa visão mais alargada de sociedade onde é desejável viver e enquadradas num programa de ação condicente. A governação vai então andar um passo à frente do presente e recusar uma postura de permanente remedeio. É por isso que não podemos deixar a ideologia morrer.

Vale a pena dizer que agir ideologicamente não implica radicalizar. Posso guiar a minha ação de acordo com valores prioritários, sem excluir que esses valores terão de ser compatibilizados com os valores de outros cidadãos e sem assumir que a ideologia que subscrevo é perfeita. Assim, da existência de ideologias extremistas não se pode inferir que a ideologia deveria ser simplesmente suprimida – pelo contrário, deve concluir-se que as ideologias de cariz democrático necessitam de um robustecimento que lhes permita oferecer uma resposta verdadeiramente mobilizadora ao extremismo.

O argumento segundo o qual já não precisamos de ideologia traz consigo riscos significativos para um regime democrático. O primeiro deles tornou-se bem patente nas fake news de Donald Trump. Se os ideais e valores deixam de ser o centro do debate e apenas nos governamos com base em “factos”, as estratégias eleitorais dos atores políticos irão irremediavelmente virar-se para a disputa dos próprios factos ou para a produção de factos alternativos. Desta maneira, esses factos que, em contraste com a subjetividade da ideologia, se pressupunham objetivos, acabam por se tornar meros instrumentos do poder político.

Um segundo risco tem a ver com a despolitização. Num espaço público onde escasseiam as alternativas ideológicas, os cidadãos desmobilizam-se e o discurso político acaba por assimilar mecanicamente as reformas “que têm de ser feitas”, conforme o parecer dos peritos. Ora, a democracia não consiste simplesmente na identificação de políticas “certas” ou “erradas” do ponto de vista técnico, mas num debate aberto e plural sobre os diferentes caminhos possíveis. A escassez de ideais vai esvaziando esse debate e faz com que toda a esperança dos cidadãos seja depositada na técnica, descurando o potencial transformador das comunidades políticas. É pois tempo de trazer os ideais de volta à política. Os grandes problemas do nosso tempo estão à espera para serem interpretados segundo uma matriz de princípios e valores. Se queremos alargar os horizontes da nossa cidadania, não podemos deixar a ideologia morrer.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.