A Marta: noviça, irmã e amiga

Vi a Marta, pela primeira vez, num dia de outono de 2005. Recordo bem o seu olhar claro e o seu sorriso franco. Mas faltava sempre alguma coisa.

“Houve algo de luminoso na morte da Marta”. Estas palavras, ditas na homilia da missa em sufrágio pela Marta, despertaram-me da tristeza em que me encontrava. E entendi: houve algo de luminoso na sua morte, porque houve algo de luminoso na sua vida.

Vi a Marta, pela primeira vez, num dia de outono de 2005. Recordo bem o seu olhar claro e o seu sorriso franco. Possuía tantas marcas da nossa sociedade, nos seus gestos, nas suas palavras, nas suas atitudes. Era uma jovem que dispersava o seu tempo e as suas energias em atividades diversas, sempre a correr, entre a faculdade, as atividades paroquiais e a música. Andava agitada e inquieta. Algo, no seu coração, não a deixava satisfeita. Faltava sempre alguma coisa, apesar de não lhe faltarem os amigos, a bondade da família, os desafios da vida universitária, os convites para tantos eventos musicais, as solicitações que nunca faltam a quem é jovial, como era a Marta.

Mas faltava sempre alguma coisa.

Acompanhei-a no noviciado. Entrou na Congregação da Aliança de Santa Maria no dia 1 de janeiro de 2006 e, recordo bem, trouxe consigo tudo o que era! Não queria deixar nada de fora. O conhecimento da pessoa de Jesus, por quem se tinha enamorado, era vago e difuso. Já lhe era familiar, é certo, mas ainda era bastante idealizado e mediado pela experiência eclesial que tinha. Bem mais claro e intenso era o desejo de a Ele se entregar, para sempre. Tinha percebido o olhar de Jesus sobre ela, um olhar e um convite: Vem e segue-Me. Disse-lhe que sim. E deixou de faltar alguma coisa, apesar de ir deixando tanto do que tinha e do que era. Sempre foi assim, a Marta, uma jovem do tudo ou nada. Levava a sério tudo o que foi ouvindo e aprendendo no noviciado mas, sobretudo, era muito dócil ao que o Senhor lhe ia mostrando no interior do seu coração.

Já não dispersava forças e energias, mas parecia totalmente absorvida por uma única ideia, um único desejo: unir-se ao Senhor do seu coração.

A fidelidade que mais me comovia na jovem noviça era a do encontro diário com o seu Jesus, na Eucaristia e na Palavra. Naquele tempo, no noviciado, e em jeito de brincadeira, fomos atribuindo personagens bíblicas às noviças. Foi apenas um jogo, mas a Marta levou-o muito a sério. A ela tocou-lhe a Rainha Ester, a que entra no palácio do Rei, seu esposo, para interceder pelo seu povo. Ao longo da sua vida, quando falávamos sobre as coisas da vida espiritual, por vezes vinha esse tema à baila. Era sempre com um sorriso entusiasmado e com o seu olhar brilhante que partilhava comigo a forma de entender a sua relação com Jesus a partir dessa perspetiva. E como Maria, a senhora de Coração Imaculado, mãe e mestra do nosso caminho de discipulado, em Aliança, a ensinava a entregar-se a Jesus, que Ela conhecia por dentro, como só uma mãe conhece o seu filho. E os anos foram passando. A Marta colocava fogo e paixão em tudo o que fazia, desde as aulas que deu, às palestras sobre a mensagem de Fátima. Até na forma como enfrentava as dificuldades próprias do seguimento de Jesus onde, por vezes, parece que o homem velho que nos habita quer renascer, a Marta ia-se tornando cada vez mais inteira e decidida. Nos últimos anos a Congregação pediu-lhe que assumisse a missão de ser Mestra de Noviças. Foi uma comoção vê-la nos últimos meses da sua vida. É que, sem sair da casa do noviciado, parecia que continuava a correr, sempre a correr, porque tinha encontrado “a única coisa necessária” (Lc 10, 42). Já não dispersava forças e energias, mas parecia totalmente absorvida por uma única ideia, um único desejo: unir-se ao Senhor do seu coração. Tinha-se interessado pelo Cântico dos Cânticos – o livro predileto de quem tem alma de artista – e aí, nesse belíssimo poema de amor, procurava encontrar a compreensão do seu próprio mistério e do mistério da sua história de amor com Jesus.

No dia 12 de maio, o capelão da comunidade, pediu-lhe que preparasse, para a eucaristia do dia seguinte, uma pequena reflexão sobre Fátima. E a Marta fê-lo.

Como é bela a morada da Tua ferida. […]
E toca-me […]
Para que se afaste
Tudo o que me afasta de Ti!” (Ir. Marta Mendes)

Na manhã do dia 13 de maio, enquanto o Santuário de Fátima era envolvido por um nevoeiro desolador, que cobria o recinto de oração vazio de peregrinos e em silêncio, a Marta escrevia, sem o saber, o seu testamento espiritual. Lia a mensagem de Fátima iluminada pela luz que emanava da busca mútua do amado e da amada do Cântico dos Cânticos. Na Eucaristia dessa tarde, após tocar o Aleluia – o último cântico que tocou – a Marta levantou-se e começou a ler o que tinha escrito. Na última frase, que já não pronunciou, pedia “Arrasta-me atrás de ti. Corramos! Faça-me entrar o rei em seus aposentos” (Ct 1,4). O seu sangue começava a derramar-se no seu cérebro e não a deixou terminar. Tinha 35 anos. O último dia em que a vi foi no dia 14 de maio. Estava deitada na cama do hospital. Coberta com um lençol branco, nunca me pareceu tão luminosa, nunca um corpo doente me pareceu tão solene. “Marta, és mesmo como a Rainha Ester”, pensei. E rezei: “intercede por nós”.

Precisamente um mês antes da sua morte, a 17 de abril, a Marta tinha partilhado comigo um pequeno poema que tinha escrito (eu gostava de a ler e ela gostava de me dar este alegria).

“Tenho saudade do Teu Coração
Silencioso lume. […]
Doce ferida
Do teu lado aberto
Sangue que purifica
O corpo da amada.
Como é bela a morada da Tua ferida. […]
E toca-me […]
Para que se afaste
Tudo o que me afasta de Ti!”

Era a sua oração. E o Senhor da sua vida respondeu à sua prece. Afastou tudo o que a afastava dele. Terminou em sangue a vida desta jovem mulher consagrada, com alma de fogo. Como ficariam felizes as suas fundadoras, que insistiam que a Aliança de Santa Maria é um mistério de fogo e de sangue.

E recordo as palavras da homilia: “Sentimos uma vez mais que tristeza e gratidão podem estar juntas”.

Fotografia da Aliança de Santa Maria publicada pela Agência Ecclesia.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.