A Igreja da Laudato si’ e a exploração dos recursos naturais

Importa encontrar mais avenidas de colaboração entre as Igrejas do Norte e do Sul, para enfrentar com maior eficácia e realismo os tremendos desafios que a humanidade tem pela frente quanto ao cuidado da casa comum.

Escrevo estas notas após o encerramento do Tempo da Criação de 2024, que teve como tema “Espera e age com a criação”, a partir da Mensagem do Papa para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação. Estas celebrações e os inúmeros gestos e iniciativas concretas em que se empenham as nossas dioceses, paróquias, catequeses, escolas, movimentos de apostolado e grupos e organizações de inspiração cristã constituem um sinal evidente de que há uma mudança em curso na Igreja no que à ecologia diz respeito. Trata-se de uma mentalidade Laudato si’ que se vai formando e fortalecendo, ainda que de modo desigual de acordo com as inevitáveis circunstâncias de lugar geográfico, de formação pessoal, de visão do mundo e do tipo de comunidades e ambientes que cada cristão frequenta. “Temos de cuidar do planeta”, oiço com alguma frequência dizer aos meus filhos, algo quase impensável na mesma idade na minha geração.

Muito o devemos, sem dúvida, à opção corajosa do Papa Francisco de apelar a uma ecologia integral que inclui tanto o cuidado pelo ser humano como pela criação. Isto logo a partir do seu texto inicial e programático, a Evangelii Gaudium, associando-se nesta tarefa ao exemplo do grande santo que escolhera como patrono do seu pontificado: “Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos” (n. 216).

Contudo, por mais otimista que me sinta com tantos sinais desta transformação de mentalidade que vejo ocorrer diante dos olhos, confesso que, ao mesmo tempo, em muitos momentos me parece estarmos apenas a arranhar a superfície dos grandes desafios que temos pela frente. Vou abordar aqui apenas a questão das consequências, tanto para o meio ambiente e o clima como para o ser humano, do modo como continuam a ser explorados os recursos naturais e, em especial, os combustíveis fósseis.

1. O que sabemos bem

Francisco oferece na Laudato si’ (n. 23 – todas as citações que seguem são da mesma encíclica) uma síntese cristalina do tremendo desafio colocado pelo aquecimento climático que um grande consenso científico atribui “à alta concentração de gases com efeitos de estufa (…) emitidos sobretudo por causa da atividade humana”. Particularmente responsável por este fenómeno é o “modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial”.

A intensificação dos fenómenos meteorológicos extremos é disso uma consequência irrefutável, não obstante todos os negacionismos irresponsáveis dos defensores do “let’s drill, drill, drill…”. Se muitos locais de África e da Europa foram confrontados nos últimos meses por tempestades e cheias de dimensões perfeitamente incomuns, a América do Sul tem sido atingida agora por uma seca de dimensões bíblicas em toda a bacia do Amazonas e por incêndios catastróficos em quase todos os países do subcontinente, agravados por uma humidade atmosférica baixíssima. A minha colega que trabalha a partir de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, dizia-me há dias que o ar estava de tal modo irrespirável devido ao fumo causado por estes incêndios que os filhos estavam de novo a ter aulas online em casa, tal como no tempo da pandemia. Embora sendo eu avesso ao catastrofismo, não há como fugir à consciência de que a ocorrência destes fenómenos só se vai intensificar em todo o planeta.

Se muitos locais de África e da Europa foram confrontados nos últimos meses por tempestades e cheias de dimensões perfeitamente incomuns, a América do Sul tem sido atingida agora por uma seca de dimensões bíblicas em toda a bacia do Amazonas e por incêndios catastróficos em quase todos os países do subcontinente, agravados por uma humidade atmosférica baixíssima.

2. O que é urgente fazer

O apelo do Papa por uma transição energética é, de novo, muito claro na Laudato si’ (n. 26): “tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de dióxido de carbono e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável”. E, mais à frente no texto: “Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora, substituída” (n. 165).

3. O que impede, então, a transição energética?

Sem dúvida que o principal empecilho reside nos elevadíssimos custos que uma tal transição implica. Como diz Francisco (n. 165): “A política e a indústria reagem com lentidão, longe de estar à altura dos desafios mundiais”. Vive-se um impasse entre a recusa dos principais responsáveis pela crise climática – os países mais industrializados do Norte – em assumirem a principal parcela de tais custos e a incapacidade financeira da maioria dos países do Sul em tomarem medidas de mitigação e de transformação das fontes de energia, eles que são as vítimas das consequências mais gravosas – atente-se, só para dar um exemplo, na ocorrência alarmante de ciclones, vários deles de intensidade catastrófica, no Oceano Índico, sendo Madagáscar e Moçambique os dois países mais atingidos por este fenómeno.

Vive-se um impasse entre a recusa dos principais responsáveis pela crise climática – os países mais industrializados do Norte – em assumirem a principal parcela de tais custos e a incapacidade financeira da maioria dos países do Sul em tomarem medidas de mitigação e de transformação das fontes de energia, eles que são as vítimas das consequências mais gravosas – atente-se, só para dar um exemplo, na ocorrência alarmante de ciclones, vários deles de intensidade catastrófica, no Oceano Índico, sendo Madagáscar e Moçambique os dois países mais atingidos por este fenómeno.

Há mesmo uma falta de seriedade na forma como a urgência da crise climática é enfrentada. Francisco não hesita em apontar as responsabilidades: “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder económico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas” (n. 26).

Ainda sobre a aposta nas chamadas energias renováveis, verdes ou limpas, custa-me muito aceitar os padrões duplos de uma grande parte da indústria dos combustíveis fósseis. Esta é sedeada na sua maioria nos países do Norte (América do Norte, Europa, Rússia, países árabes, China) e, sobretudo nos países do chamado Ocidente, apresenta-se como campeã da luta contra as alterações climáticas – incluindo nos debates muitas vezes teatrais das Cimeiras da ONU para o Clima – pela via da aposta nas referidas energias renováveis. Porém, essas mesmas empresas prosseguem a sua aposta inalterável em investimentos na exploração de combustíveis fósseis nos países do Sul, com consequências muito frequentemente trágicas não só para o ambiente como para as populações locais. Recordo o meu espanto ao passar há dois anos pelo aeroporto de Frankfurt e me ter deparado com uma enorme campanha publicitária, em cartazes nas paredes de todo o aeroporto, precisamente de uma empresa energética que está a promover a exploração de petróleo e gás natural um pouco por toda a África: “A Total está empenhada na transição energética; a Total está a construir o futuro das novas gerações por meio da aposta nas energias limpas”.

4. Exploração de recursos e conflitos

Há que dizer também, com toda a clareza, que se nota cada vez mais uma correlação muito nítida entre a exploração de recursos naturais – sejam os combustíveis fósseis a que me estava a referir, sejam os mais variados minerais, as madeiras ou a própria água – e a irrupção de conflitos armados onde eles anteriormente não existiam, com a consequência muitas vezes inevitável de deslocamento em massa de populações indefesas. Esta correlação levanta muitas suspeitas de que o nexo de causalidade não seja inocente – suspeitas entre a população local, organizações da sociedade civil e também representantes da hierarquia eclesial.

5. A voz da Igreja

A Igreja Católica surge assim cada vez mais como voz profética em defesa do meio ambiente e da dignidade humana. O Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral tem tido este ano o privilégio de acompanhar reuniões de Bispos do continente africano e da América Latina que procuram refletir sobre estas questões espinhosas e reforçar o seu compromisso episcopal conjunto. Não se pode ignorar que num continente tão rico de recursos como é a África, mas com uma vasta maioria da população ainda a viver abaixo do limiar da pobreza, muitas vezes mesmo em condições miseráveis, os Bispos sintam como imperioso trilhar as vias do desenvolvimento humano e social, incluindo o crescimento económico: “garantir que os abundantes recursos da África contribuam para o desenvolvimento económico, beneficiem a maioria de sua população, promovam a paz e aliviem a pobreza” (Comunicado de imprensa do Seminário “Conflitos em África no Contexto da Exploração dos Recursos Naturais e Minerais”, Accra, 8-10/03/2024). Mas este desenvolvimento e crescimento não podem continuar à custa dos direitos dos povos, sobretudo as populações indígenas e camponeses, e da salvaguarda do meio ambiente, como declararam inequivocamente os Bispos latino-americanos de territórios afetados pela mineração, reunidos de 8 a 10 de outubro último no Panamá.

Importa, por isso, encontrar mais avenidas de colaboração entre as Igrejas do Norte e do Sul, para enfrentar com maior eficácia e realismo os tremendos desafios que a humanidade tem pela frente quanto ao cuidado da casa comum. Temos, também, de continuar a deixar-nos espantar e maravilhar – com aquela candura e encanto próprios das crianças – diante da beleza da criação que Deus nos ofereceu. E a querer unir forças com todos quantos a defendem, povos originários, jovens, cientistas, ativistas, todos os que estão “unidos por uma preocupação comum” (nn. 7-9).

 

+ Em memória de Juan Antonio López, ambientalista hondurenho e católico comprometido, assassinado a 14 de setembro de 2024.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.