A experiência da luz

Tendemos a ter uma perspetiva bipolar do mistério pascal, morte e ressurreição, como se morte e ressurreição tivessem um abismo intransponível a separá-las. Perdemos a possibilidade de um convívio salutar com a experiência da luz.

Muito para além de uma mera experiência estética, a experiência da luz põe a descoberto a grandeza de um novo horizonte, do qual o indivíduo emerge profundamente transformado, com um olhar novo, capaz de captar a realidade já transfigurada. Na sua obra Brancura Luminosa, Jon Fosse, prémio Nobel da Literatura 2023[1], transmite-nos de um modo sábio, fruto também da experiência vivida, a beleza da mística da luz. Sim, será mais apropriado designar esta experiência de “mística da luz”.

No sentido de fazer uma breve introdução a esta intensa luminosidade, que remete para uma profunda experiência do transcendente, gostaríamos de citar o Papa Francisco quando diz: “não se entenda o silêncio orante como uma evasão que nega o mundo que nos rodeia. O «peregrino russo», que caminhava em contínua oração, conta que esta oração não o separava da realidade externa: «quando me encontrava com as pessoas, parecia-me que eram todas tão amáveis como se fossem da minha própria família. (…) E a felicidade não só iluminava o interior da minha alma, mas o próprio mundo exterior aparecia-me sob um aspeto maravilhoso».[2]

A mística da luz surge muito associada ao oriente cristão. Thomas Merton, monge trapista, contrapõe a mística da noite, no ocidente cristão, à mística da luz, no oriente cristão[3]. No campo da teologia, as duas figuras mais emblemáticas são: Tomás de Aquino (1225-1274), no ocidente, e Gregório Palamas (1296-1359) no oriente. No entanto, esta distinção não pode ser vista como algo tão claro e distinto. A realidade é bem mais complexa. Bento de Núrsia (480-547), patriarca dos monges do ocidente, vê todo o universo suspenso num feixe de luz.

Conhecendo o oriente cristão e lendo a Autobiografia de Inácio de Loiola, ficaremos surpreendidos ao constatar que esta obra está toda ela inundada de luz. Nos escritos de Inácio deparamo-nos, com frequência, com várias palavras pertencentes ao campo semântico da luz: “blanco, lumbre, luz, rayos”[4]. Numa perspetiva muito joanina (do evangelista S. João), Inácio faz um uso amplo, em larga escala, do termo “glória”. Não é por acaso que o lema da Companhia de Jesus é precisamente Ad maiorem Dei gloriam.

A espiritualidade inaciana traduz esta experiência da luz com a expressão “ver a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”[5]. Por um lado, todas as coisas têm a marca de Deus e, por outro, estão inscritas em Deus, são participantes da vida divina. Deus “habita” e “trabalha” no mundo[6]; a presença de Deus no mundo é dinâmica; a ação de Deus é transversal ao mundo e, mediante uma história de salvação, o mundo converge para a vida eterna e plena em Deus. “Ver” Deus em todas as coisas tem uma significação diferente em Inácio de Loiola: este “ver” decorre de uma profunda comunhão que rasga uma nova perspetiva da luz. Inácio gozava do dom da “locuela”: era sensível ao cântico que todas as criaturas entoam permanentemente ao Criador[7], por isso passava muito do seu tempo a contemplar o céu, as estrelas e a natureza.

“Ver” Deus em todas as coisas tem uma significação diferente em Inácio de Loiola: este “ver” decorre de uma profunda comunhão que rasga uma nova perspetiva da luz. Inácio gozava do dom da “locuela”: era sensível ao cântico que todas as criaturas entoam permanentemente ao Criador[7], por isso passava muito do seu tempo a contemplar o céu, as estrelas e a natureza.

Retomemos a Brancura luminosa, de Jon Fosse. Nesta obra é clara a procura do equilíbrio das duas perspetivas anteriormente referidas: a do oriente e a do ocidente. E, não obstante o género literário parecer um misto de ficção, parábola e sonho, identificamos nesta obra um caminho espiritual onde estão presentes as vias purgativa, iluminativa e unitiva[8]. Vejamos, num breve resumo, a luz que permeia a história que surge descrita nesta obra:

Etapa 1. Uma viagem solitária, de carro. Os aglomerados populacionais vão ficando para trás e o protagonista vai mergulhando na floresta negra onde as árvores e as estradas florestais se multiplicam quase ao infinito. À medida que se afasta das povoações, as estradas vão-se tornando sucessivamente mais estreitas, pelo que se vai tornando cada vez mais impossível a inversão de marcha. O carro acaba por ficar atolado. A brancura da neve. A temperatura gélida do final do outono. A noite vai caindo, dando lugar à escuridão negra. Desorientação geográfica. Possibilidade de enregelamento e morte;

Etapa 2. Inesperadamente, na escuridão, uma silhueta branca luminosa aproxima-se. “A silhueta de uma pessoa, no interior de uma brancura luminosa[9] (…) A luz era forte, mas olhar para ela não provocava dor. Era surpreendentemente bom olhar para ela[10] (…) O que era estranho é que já não sentia frio. Já não estava enregelado (…) Quanto mais a figura se tinha aproximado, mais quente eu me sentia[11]”;

Etapa 3. “De repente senti como que uma mão pesada mas ao mesmo tempo leve, pousada no meu ombro. (…) E a seguir senti algo como um braço, pousado sobre os meus ombros, a envolver-me ao de leve.[12] (…) Agora eu sentia o braço desta figura brilhante como sendo uma parte inseparável do meu corpo.[13] (…) A figura de brancura luminosa com quem eu falava e que me respondia.[14] (…) Era como se houvesse nessa voz algo a que se pode chamar amor. Amor, e afinal o que quero eu dizer com uma palavra como esta, porque se há palavras que não querem dizer nada, esta será uma delas[15]”;

Etapa 4. Fruto do encontro com a figura luminosa o protagonista ressurge pacificado, de modo a aceitar a sua situação. Este encontro está associado a um segundo nascimento, sob duas formas: o retorno à existência terrena, profundamente transformado ou, então, através da morte terrena, aceite como algo natural, contando com a solicitude dos pais já mortos, a querer ajudar neste processo e tendo como desfecho a vida plena em Deus. Fruto deste encontro o indivíduo sente-se livre interiormente para uma coisa ou outra. Depois deste encontro o protagonista põe-se à procura de alguém que o possa ajudar a desatolar a viatura. Contudo, sente que a figura lhe diz «eu acompanho-te», e que caminha a seu lado[16]. Fruto de um novo diálogo, a figura acaba por lhe revelar a identidade: “eu sou quem sou”[17] (Ex 3, 14). Posteriormente insinua-se que a figura é em si mesma o caminho[18] (Jo 14, 6);

Etapa 5. A morte é simbolizada por um homem de fato preto, camisa branca e gravata preta, que caminha descalço na neve, denotando ausência de sensibilidade terrena. Curiosamente a morte é sempre acompanhada de muito perto da figura luminosa[19], como que a significar que a morte é passagem para outra realidade e não tem existência isoladamente.

Tendemos a ter uma perspetiva bipolar do mistério pascal, morte e ressurreição, como se morte e ressurreição tivessem um abismo intransponível a separá-las. Perdemos a possibilidade de um convívio salutar com a experiência da luz. Haveria que avançar para uma perspetiva integrada, que nos permite colher antecipadamente o reino de Deus, mesmo no meio das dificuldades presentes. Porventura perceber que os doentes terminais poderão já ir fazendo uma experiência de ressurreição. Há quem abrace a morte de forma niilista, negando um sentido profundo à existência, como se não houvesse mais nada, exorcizando, deste modo, não só a morte mas também a vida plena.

No evangelho de S. João, os mistérios dolorosos já são glória (Jo 13, 31-32)! E não só em S. João, também nos sinópticos (S. Mateus, S. Marcos e S. Lucas) a paixão do Senhor já apresenta uma série de sinais de uma ressurreição antecipada. Neste contexto, também é pertinente mencionar o Crucificado Sorridente, na capela do castelo pertencente à família de Francisco Xavier.[20] Também João Paulo II aprofunda o mistério de uma alegria associada aos mistérios dolorosos.[21] Contra tudo o que seria espectável, Inácio diz que pode ser precisamente em plena adversidade, com o mar revolto, que a consolação espiritual se venha a fazer sentir.[22]

Brancura Luminosa é pois um livro sobre a morte enquanto páscoa para a vida plena em Deus, num vazio em que nos movemos sem nos mover, e em que respiramos ou somos respirados pela presença da brancura luminosa[23]. A morte apresenta-se então como uma experiência de solidão acompanhada e envolta de luz. Fruto do encontro com Deus, a morte acaba por se apresentar como algo natural, constituindo a passagem para a vida plena, iluminada.

 

 

Referências:

[1] Jon Fosse, Uma brancura luminosa, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2024. Jon Fosse recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 2023. Nasceu em 1959 na Noruega. Com apenas sete anos, teve um grave acidente, em que quase morreu. Este acontecimento constituiu, para J. Fosse, uma experiência marcante e simultaneâmente formativa ao nível antropológico mas sobretudo espiritual. Converteu-se ao catolicismo em 2012.

[2] Papa Francisco, Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, 2018, www.vatican.va, nº 152.

[3] Cf. Thomas Merton, Mystique et zen, Éditions Albin Michel, Paris, 1995.

[4] Cf. Concordancia Inaciana, Ed. Mensajero – Ed. Sal Terrae, Bilbao – Maliaño, 1996.

[5] Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, Mensajero – Sal Terrae, Bilbao – Maliaño, 2007, “Encontrar a Dios”; Inácio de Loiola, Autobiografia, Apostolado da Oração, Braga, 2005, nº 99.

[6] Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, Apostolado da Oração, Braga, 2005, nº 335 e 336.

[7] Cf. Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, Mensajero – Sal Terrae, Bilbao – Maliaño, 2007, “Locuela”.

[8] Cf. Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, nº 10.

[9] Op. cit. p. 19

[10] Op. cit. p. 21

[11] Op. cit. pp. 21-22

[12] Op. cit. p. 22

[13] Op. cit. p. 23

[14] Op. cit. p. 24

[15] Op. cit. p. 27

[16] Cf. op. cit. pp. 29-30

[17] Op. cit. p. 30

[18] Cf. op. cit. pp. 36, 43

[19] Cf. op. cit. pp. 49, 50 e 52

[20] Marta García Fernández, De noite iremos, Reflexões bíblicas sobre o tríduo pascal, Apostolado da Oração, Braga, 2024, “Um Crucificado sorridente”, pp. 74-92.

[21] João Paulo II, Exortação apostólica Novo millennio ineunte, 2001, nº 27.

[22] Cf. Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, nº 316.

[23] Cf. op. cit. p. 54. Os escritos de S. João são atravessados por um intenso clarão: desde o Logos que é a luz verdadeira (Jo 1, 9) até à Nova de Jerusalém iluminada pela glória de Deus, sendo a lâmpada o Cordeiro (Ap 21, 23).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.