A liberdade de não controlar

Com a experiência quase física de que não controlo nada, e passado o primeiro choque, surgiu-me uma enorme sensação de liberdade. Saiu-me um peso de cima! A clarividência de que posso libertar-me de preocupações e medos.

Com a experiência quase física de que não controlo nada, e passado o primeiro choque, surgiu-me uma enorme sensação de liberdade. Saiu-me um peso de cima! A clarividência de que posso libertar-me de preocupações e medos.

Uma declaração prévia: escrevo estas linhas com a total consciência do enorme privilégio de poder fazer descobertas luminosas em tempos tão duros. Não consigo aderir à ideia de que a pandemia mostra que estamos todos no mesmo barco; é impossível ficar indiferente a que, mais uma vez, os mais desprotegidos da nossa sociedade sejam quem mais sofre. Esse é o nó que não me sai da garganta e que quero que não saia. Mas já aqui voltarei.

Sou, por natureza, pouco dada a arriscar e com tendência a tentar ter «tudo sob controlo». A minha profissão agravou essa tendência. Como advogada, uma parte substancial do meu trabalho é antecipar riscos e encontrar a melhor forma de proteger o cliente do que possa vir a acontecer, admitindo sempre os piores cenários. Treinei-me a tentar, de forma racional, antecipar o futuro e controlá-lo.

Ora, quando de um dia para o outro tudo mudou, quando a incerteza se instalou, naturalmente senti-me (como tantos) sem chão e com medo. Definitivamente, chegavam uns tempos em que não podia controlar o desenrolar da minha vida (como se alguma vez isso tivesse sido possível…!), em que mais valia não programar, nem sequer as férias, em que de nada servia desmultiplicar-me para garantir que tudo corria bem.

E, curiosamente, com esta experiência quase física de que não controlo nada (finalmente percebo o que há tantos anos andava a rezar…), e passado o primeiro choque, surgiu-me uma enorme sensação de liberdade. Saiu-me um peso de cima! A clarividência de que posso afinal libertar-me de uma série de preocupações e medos e de tentar moldar o que vai vir.

Não se trata tanto de gestos, mas da atitude interior. Entregar e viver cada dia, saborear o que me é dado sem a prisão de procurar dominar o que vou viver, não ter medo do risco.

Sim, claro que cumpro todos os cuidados sanitários que os tempos exigem (e às vezes com medo de não fazer bem). Não é isso!

Não se trata tanto de gestos, mas da atitude interior. Entregar e viver cada dia, saborear o que me é dado sem a prisão de procurar dominar o que vou viver, não ter medo do risco.

Porque afinal…estamos nas mãos de Deus, e compete-me fazer o que me cabe e… confiar.  E que bom que é confiar n’Ele!

Sim, pode vir sofrimento, não sei qual, vai custar a vida com limitações dos próximos tempos, nem sei quanto. Mas para quê ocupar o meu coração e a minha cabeça com isso, se não posso controlar?

Mais leve e com menos correntes, consigo experimentar que, no confinamento da minha casa, o espaço da minha vida é afinal bem maior do que aquele que eu tantas vezes me impunha a mim mesma quando circulava por todo o lado.

Mais livre, tenho mais espaço para disfrutar plenamente dos pequenos gozos e revelações de cada dia… E estes tempos têm-me proporcionado tantos!

Mas no meio disto, e volto ao princípio, há uma inquietação enorme: é verdade que tenho descoberto tantas coisas boas mas à minha volta, e pelo mundo, estes tempos são de muito sofrimento. Sofrimento provocado diretamente pela doença, e pela solidão e miséria terrível que a pandemia trouxe.

E uma conversa, até agora sobretudo interior, não me larga: não posso continuar a viver do mesmo modo. Este imenso terramoto que estamos a viver tem de servir para alguma coisa. Não podemos voltar à vida «as usual»!

Arriscar viver com menos e partilhar mais, menos consumismo, abrandar o ritmo e ter mais tempo para a vida, e para quem precisa, integrar e tratar de outra maneira os mais velhos… isto, mas provavelmente não só…

Não tenho as respostas. Não sei exatamente onde essa reflexão me levará.

Gostava aliás que fosse uma reflexão partilhada, que pelo menos nós, cristãos, nos sentássemos a conversar sobre o que é que em concreto temos que mudar. Temos a responsabilidade de que o maldito vírus sirva para levarmos mais a sério a radicalidade que nos é proposta no Evangelho.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.