Um poema de Adélia Prado e outros textos

Um poema de Adélia Prado que nos coloca diante de Deus comentado pelo P. Mário Garcia, sj. Um modo inspirador de viver este tempo que atravessamos.

Um poema de Adélia Prado que nos coloca diante de Deus comentado pelo P. Mário Garcia, sj. Um modo inspirador de viver este tempo que atravessamos.

O Pai

Deus não fala comigo
nem uma palavrinha das que sussurra aos santos.
Sabe que tenho medo e, se o fizesse,
como um aborígine coberto de amuletos
sacrificaria aos estalidos da mata;
não me tirasse a vida um tal terror.
A seus afagos não sei como agradecer,
beija-flor que entra na tenda,
flor que sob meus olhos desabrocha,
três rolinhas imóveis sobre o muro
e uma alegria súbita,
gozo no espírito estremecendo a carne.
Mesmo depois de velha me trata como filhinha.
De tempestades, só mostra o começo e o fim.

(Adélia Prado, Tudo o que existe louvará, antologia, Porto editora, Assírio & Alvim, 2016, p. 208)

 

A verdade que nos transmite o poema não acaricia, como se fosse um óleo de beleza. O desejo parece frustrado. O medo dos estalidos da mata sobrepõe-se ao amuleto. O terror de que se fala, livra de esconjurar a morte. Deus afaga. Nas coisas simples, nessa alegria súbita que nos invade e penetra. Nem o passar do tempo, por entre tempestades, nos desterra do princípio e do fim. A ternura infinita de Deus, o Paizinho que nos protege, consola-nos na certeza de que tudo tem sentido.

 

Deus afaga. Nas coisas simples, nessa alegria súbita que nos invade e penetra. Nem o passar do tempo, por entre tempestades, nos desterra do princípio e do fim. A ternura infinita de Deus, o Paizinho que nos protege, consola-nos na certeza de que tudo tem sentido.

 

Vem este texto a propósito da pandemia que atravessamos. Se o último verso – “De tempestades, só mostra o começo e o fim” – adquire a sua significação plena como chave de ouro do caminho que é a nossa vida; então, como duvidar que vivamos fora do amor, quando parece que Deus está longe, ou a “dormir”? A fé, virtude teologal que, pelo facto de o ser inclui todas as outras, prepara-nos para o combate e promete-nos a vitória. É bom e necessário recordar o capítulo oitavo da Carta de São Paulo aos Romanos,nomeadamente, os versículos 35-39 que começam assim: “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?”. Igualmente, a oração do ofício de Laudes da segunda-feira da primeira semana: “Senhor, que a vossa graça inspire as nossas obras e as sustente até ao fim, para que toda a nossa actividade por Vós comece e em Vós acabe”. Antiga prece que figura em numerosos devocionários e que o Papa Bento XVI cita na Audiência de quarta-feira, 25 de Abril de 2012: “Sem a oração quotidiana, vivida com fidelidade, o nosso fazer esvazia-se, perde a alma profunda, reduz-se a um simples activismo que, no final, nos deixa insatisfeitos.” Há uma bonita invocação da tradição cristã, a recitar antes de cada actividade, que reza assim: «Actiones nostras, quæsumus, Domine, aspirando præveni et adiuvando prosequere, ut cuncta nostra oratio et operatio a te semper incipiat, et per te coepta finiatur», ou seja: «Inspirai as nossas acções, Senhor, e acompanhai-as com a vossa ajuda, para que cada nosso falar e agir receba sempre de Vós o seu início e em Vós tenha o seu cumprimento»”.

Ajuda-nos, a poesia, a palavra de Deus, a oração, a mantermo-nos vigilantes, fundados na pedra angular que é Cristo, nesta hora escura e grave, que todos nós, em pandemia, isto é, com todo o povo, atravessamos. Não a transformemos em Pandemonium, palavra inventada no século XVII por John Milton, em “Paraíso Perdido” (I, 710), para denominar a Cidade dos Demónios. Lá não se luta nem se espera: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate (Dante, “Divina Comédia”, Inferno, III, 9). Aqui, sim, “a esperança não engana” (Rm 5, 5), é sempre vitoriosa, “na alegria súbita” de um “beija-flor que entra na tenda”, na visão pacificada de “três rolinhas imóveis sobre o muro”.

 

Fotografia de: Lucy Chian – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.