Um lugar diferente dos outros

Auvergnat, Georges Brassens, Dostoievski, Veronese e uma lição de arqueologia.

Auvergnat, Georges Brassens, Dostoievski, Veronese e uma lição de arqueologia.

1. Como mel para a boca

Em mais um artigo sobre a Páscoa, hoje reflectimos sobre o lugar para onde levaram Jesus no momento da morte. Georges Brassens fez esta reflexão a propósito do Auvergnat (um idioma regional de França).


2. Um texto bíblico

Ao longo dos 7 domingos do tempo pascal, propomos um mergulho nos relatos da Páscoa e em textos que ajudam a compreender este mistério. Neste domingo, debruçamo-nos sobre o lugar do enterro e da Ressurreição.

José de Arimateia, depois de comprar um lençol, desceu o corpo da cruz e envolveu-o nele. Em seguida, depositou-o num sepulcro cavado na rocha e rolou uma pedra sobre a entrada do sepulcro. Maria de Magdala e Maria, mãe de José, observavam onde o depositaram. Passado o sábado, Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram perfumes para ir embalsamá-lo. De manhã, ao nascer do sol, muito cedo, no primeiro dia da semana, foram ao sepulcro. Diziam entre si:

– Quem nos irá tirar a pedra da entrada do sepulcro?

Mas olharam e viram que a pedra tinha sido rolada para o lado; e era muito grande. Entrando no sepulcro, viram um jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca, e ficaram assustadas. Ele disse-lhes:

– Não vos assusteis! Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado? Ressuscitou; não está aqui. Vede o lugar onde o tinham depositado.

Evangelho segundo São Marcos 15,46-47; 16,1-6


3. O esclarecimento

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Paolo Veronese (1528-1588), A Ressurreição de Cristo (c. 1570) Gemäldegalerie Alte Meister, Dresden, Alemanha

Onde se encontra o túmulo de Jesus? O lugar não terá sido inventado, séculos depois, para criar um destino de peregrinação?

Para responder a estas questões formuladas, como que numa reportagem, convidamo-lo a explorar as respostas do grande especialista em arqueologia da Terra Santa, Jerome Murphy O’Connor o.p. (1935-2013 — e que não tem nada a ver com a lenda do rugby irlandês James Murphy O’Connor!).

Propomos-lhe uma síntese breve, tirada do livro Keys to Jerusalem (Oxford University Press, 2012):

  • Depois da morte de Jesus (nos anos 30 d. C.), os primeiros crentes veneraram um sepulcro situado numa pedreira onde tinham sido escavadas muitas outras sepulturas. Aí deixaram traços característicos dos primeiros cristãos: graffitis nas paredes (a street art tem mais de 2000 anos…).
  • Após a revolta judaica de 132-135 d. C., o imperador Adriano, para humilhar os judeus, mandou construir templos dedicados à glória das divindades romanas, nos locais por eles venerados. Escolheu, em particular, a pedreira onde estava o sepulcro para aí construir um templo em homenagem a Vénus ou a Júpiter. O sepulcro foi, por isso, coberto por uma grande plataforma.
  • Durante dois séculos, os cristãos de Jerusalém devem ter-se dito: «É impossível ir ao sepulcro de Cristo, está debaixo do templo romano». Foi pela tradição oral, tão forte no Próximo Oriente, que se conservou este segredo.

 

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Jacob Jordaens, Os discípulos no sepulcro (1625), Gemäldegalerie Alte Meister, Dresden, Alemanha.
  • No ano 325 o bispo Macário de Jerusalém, herdeiro desta tradição oral, encontrou-se com o imperador de Roma, Constantino, durante o Concílio de Niceia. Macário convenceu-o – sem grande dificuldade, pois o imperador tinha-se tornado cristão – a mandar destruir o tempo para devolver à luz do dia o sepulcro e aí construir uma basílica.
  • Depois de autorizados, os trabalhos puderam começar sob a supervisão de Eusébio, bispo de Cesareia da Palestina († 339 d.C.), um apaixonado pela História e pela arqueologia. Ele descreve a descoberta deste modo: «Quando, camada após camada, apareceu no fundo o terreno primitivo, contra toda a esperança, ofereceu-se à vista o santo e venerável santuário da ressurreição do Salvador » (em Vida de Constantino). De seguida, o túmulo foi posto à veneração e construiu-se a Basílica do Santo Sepulcro para o abrigar.
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Sisto Badalocchio (1587-1647), O enterro de Cristo (1610), Galleria Borghese, Roma, Itália.

4. E ainda uma palavra final…

Este artigo fecha o nosso ciclo sobre o mistério da ressurreição. Este ciclo tratou de um tema central: a morte não é uma queda no vazio. Até o sepulcro desencadeia uma construção onde acorrem gerações de peregrinos e visitantes que vêm para constatar que ele está… vazio!

Na perspectiva cristã, a morte torna-se um momento de revelação fundamental, uma manifestação da vida. Esta é a experiência que faz Aliocha, o personagem de Dostoievski em Os irmãos Karamazov:

«A verdadeira mística não é mais do que o extraordinário do ordinário. […] O starets Zosima acaba de morrer. Impertinente até à sepultura, ele permite-se libertar um ‘odor asfixiante’, como toda a gente, em vez de um perfume de santidade, como os devotos esperavam. Embora desesperado, o seu discípulo Aliocha vela os seus despojos enquanto um monge lê o evangelho segundo São João. Numa espécie de sonho, Aliocha ouve a narração das bodas de Caná e vê. Ele vê o velho sentado à mesa nupcial, ao lado do Esposo solar e chamando-se, também ele, Aliocha. […] Acordando, o jovem sai para o jardim. A noite é uma vinha de estrelas que as cúpulas vindimam fazendo correr o vinho sobre a terra. Aliocha, fulminado pela alegria, prostra-se e beija a terra, e aí descobre a eucaristia».

Olivier Clément, L’autre soleil (Paris, 2010)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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