Um filme em destaque: Vitalina Varela

Vitalina Varela exige do espectador laboriosa atenção e redobrado desejo de entrar no que o realizador propõe. Mas esse exercício será largamente compensado, porque Vitalina Varela é, na realidade, um extraordinário filme.

Vitalina Varela exige do espectador laboriosa atenção e redobrado desejo de entrar no que o realizador propõe. Mas esse exercício será largamente compensado, porque Vitalina Varela é, na realidade, um extraordinário filme.

Breve Sinopse: Vitalina Varela parte de Cabo Verde à noticia da morte de seu marido. Porém apenas consegue chegar a Lisboa três dias após o funeral. Apesar de avisos contrários fica em Lisboa, no bairro em que seu marido vivera e na casa degradada do defunto. O enredo tem por base as vicissitudes reais da protagonista, Vitalina Varela, relatadas pela própria, no Bairro da Cova da Moura.

Nota Crítica: Diga-se, à partida, que o cinema de Pedro Costa (n.1958) não é de diversão ou entretenimento. Assim é desde a sua estreia como realizador, em 1989, com O Sangue. Tal como os filmes seguintes: Casa de Lava (1994) e Ossos (1997). Em 2000, com O Quarto da Vanda, deu início ao conjunto de obras construídas à volta dos habitantes do degradado Bairro das Fontainhas, entretanto destruído. Ali nasceram, a seguir, os discutidos Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro (2014), agora com personagens cabo-verdianos, destacando-se, em ambos os filmes, a personagem de Ventura. Em Cavalo Dinheiro surge, uma primeira vez, Vitalina Varela, que aí nos dá conta do essencial da sua vida. Ela e Ventura são, como veremos, os personagens centrais de Vitalina Varela.

A obra de Pedro Costa tem conhecido afortunado reconhecimento um pouco por todo o lado, desde os Estados Unidos ao Japão e nos grandes festivais europeus como Veneza, Cannes e Locarno. Em Portugal, no essencial, a crítica, com poucas excepções, tem-se mantido firme na aclamação do labor cinematográfico de Pedro Costa. Mas, perante as complexas linhas com que se tece a sua filmografia, no nosso país, além de um nicho cinéfilo, o público escasseia para a obra de Costa. Face a isto alguns, refratários ao estilo, proclamam que Pedro Costa é um realizador para festivais e não para o grande público, seja lá o que isso for. O mesmo sempre foi dito e repetido, em certos meios, a respeito de Manoel de Oliveira ou João César Monteiro…

Desde sempre o Cinema foi referido como arte e indústria. Sendo, pelas razões financeiras e logísticas que todos conhecemos, altamente dependente da última, está fora de qualquer questionamento que o Cinema é, com as suas formas específicas, uma expressão artística. E, como em qualquer arte, o autor-cineasta constrói e comunica com liberdade, aprecie-se, ou não, o que é criado. Acrescente-se que, para além de uma questão de gosto, o que o realizador propõe pode não ser eventualmente compreendido por falta de chaves para descodificar eficazmente a mensagem. E, quantas vezes, como no caso de Pedro Costa, o que é proposto pode ultrapassar as formas canónicas da linguagem cinematográfica mais óbvia. Tal pode exigir, da parte do espectador, um labor mais exigente na aproximação à obra. O problema é que em Portugal a literacia cinematográfica é baixa. Por isso, triunfa o cinema fácil, predominantemente construído dentro dos esquemas fornecidos pela hegemonia da distribuição americana. Basta em cada semana compulsarmos, em alguns jornais, a lista dos dez filmes mais vistos para termos consciência do que acabo de afirmar.

Vitalina Varela exige do espectador laboriosa atenção e redobrado desejo de entrar no que o realizador propõe. Mas esse exercício será largamente compensado, porque Vitalina Varela é, na realidade, um extraordinário filme. E, quando no final, surgem os créditos, a encerrar a obra, saímos da sala com uma experiência marcante. Numa dupla acepção: como documento humano e como obra fílmica ímpar. E quem aqui o afirma não é um indefectível de Pedro Costa.

Se o nome de Vitalina marca o título da obra, tal é de inteira justiça. Essa mulher enche de forma poderosa o filme. Vitalina é o filme. O júri do Festival de Locarno, lucidamente, reconheceu isso ao atribuir-lhe o prémio para a melhor interpretação feminina, para além do prémio máximo para o próprio filme. Vitalina é o filme, anímica e fisicamente. Sabemos como, na linguagem fílmica, a presença do rosto – sobretudo em grande plano – pode ter uma força importante. Tal acontece amiúde neste caso. Mas não apenas a presença física da protagonista. De forma singular a história desta mulher, em Cabo Verde e, depois da morte do marido, em Lisboa, impõe-se. O que ela sofre e o que ela afronta. Fiel, esperando o que nunca acontece por parte de um marido em fuga, que viveu de forma marginal e miserável na Cova da Moura, até morrer ao desamparo. É essa tragédia que, esteticamente, é assumida por Pedro Costa ao traduzir-se no negrume com que a imagem, da responsabilidade do director de fotografia Leonardo Simões, é construída. Um negro cortado por rasgos de claridade para o que é essencial, evocando essa maneira artística de trabalhar a luz e a sombra como o fizera, ainda antes do Renascimento, o designado chiaroscuro. E nada interessa um argumento por aí urdido para apoucar o filme de que a técnica usada por Costa, para esse trabalho sobre a luz, tenha sido conseguida predominantemente em pós-produção, após a rodagem, com as ferramentas oferecidas pelos sistemas digitais. Se, na meta, tal resulta em poderosa mais valia, esteticamente significante, a valorizar o drama das personagens e propondo poderosa fruição, e sentido, ao espectador, admirável é o saber para tirar partido significante dessas técnicas.

Por outro lado Vitalina Varela é pródigo em envolver a estória em valores simbólicos decorrentes de certos elementos presentes na narrativa. Veja-se, por exemplo, como o realizador valoriza a violência do vento e da chuva sobre o casebre deixado a Vitalina pelo marido e no qual esta se encontra: essa violência ultrapassa a materialidade do que acontece para assumir contornos de significação do próprio drama daquela mulher.

Por outro lado Vitalina Varela é pródigo em envolver a estória em valores simbólicos decorrentes de certos elementos presentes na narrativa. Veja-se, por exemplo, como o realizador valoriza a violência do vento e da chuva sobre o casebre deixado a Vitalina pelo marido e no qual esta se encontra: essa violência ultrapassa a materialidade do que acontece para assumir contornos de significação do próprio drama daquela mulher.

Quanto ao personagem assumido por Ventura. Encarnando a figura exaurida e decepcionada do padre daquela comunidade, figura patética, ora descrente, ora lançando gritos esperançados (ou desesperados?) a Deus, oficiando sempre uma ‘liturgia’ sui-generis, onde as palavras brotam em aparente incongruência. A traduzir a decrepitude das almas e dos corpos, bem como da crença, o espaço da capela, ele próprio em deliquescência, é também metáfora poderosa. E, ainda, o som, sempre em sussurro de vozes e ruídos ou a violência dos elementos, e onde, de forma justa, a música está ausente, apenas surgindo nos créditos finais: esse som define também o mistério daqueles casebres e daquelas vielas, para além do mistério das almas e dos corpos.

Será Vitalina Varela um relato sem esperança?  Será que o negrume o é, sem fim? Penso que o esboço de elemento redentor resida no exorcismo que Vitalina exerce sobre a angústia da sua espera frustrada e da prisão a um homem que não é merecedor do seu amor fiel e se torne, finalmente, uma mulher livre, livre das peias da morte que aqueles cemitérios enunciam. E, aí, talvez se esboce um raio de luz que triunfe sobre o negrume.

 

PS- Se os portugueses amantes do cinema tiveram alegria, há meses, porque os patrões do streaming ‘concederam’, paralelamente, a exibição em sala, do premiado Roma, filme de Quarón, desta feita a esperança esboroou-se pois que a obra extraordinária de um mestre como Martin Scorsese – O Irlandês – não será vista num cinema, ficando-se apenas nas ‘caixas’ de quem é assinante de Netflix, a produtora de um filme a que as majors americanas recusaram financiamento! Não vou aqui tecer lamentos remetendo o leitor para o excelente texto do exibidor Pedro Borges, no caderno Ípsilon, do jornal Público, de 29 de Novembro passado, texto que subscrevo. Apenas sublinho que noutros países, Netflix permitiu a curta exibição do filme em algumas salas para adquirir o direito de se candidatar aos Oscars! Em Portugal, no entanto, na consciência de que, afinal, O Irlandês é um filme para cinema (assim foi concebido e rodado pelo realizador) e não um qualquer telefilme, Netflix promoveu em Lisboa, numa sala de espectáculos, uma sessão ‘privada’ e exclusiva para críticos! Tristes tempos estes, fustigados num jornal americano, pelo próprio Martin Scorsese que, dramaticamente, apelava aos espectadores que vissem o filme… num ecrã grande.

 

VITALINA VARELA

(T.O.) – Vitalina Varela, 2019, Portugal              Estreia em Portugal: 31/10/2019

2H04 minutos – M/12 anos                              Realização: Pedro Costa

Drama                                                            Fotografia a cores: Leonardo Simões

Argumento: P. Costa e V. Varela                     Montagem: Vítor Carvalho/João Dias

Atores principais: Vitalina Varela, Ventura, Manuel Tavares Almeida, Francisco Brito

 

Em exibição:

Lisboa: Cinema Ideal

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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