Um enigma de Rembrandt

Um quadro misterioso, uma lição sobre a tradição e uma reflexão de Jean Guitton sobre a dúvida, para terminar.

Um quadro misterioso, uma lição sobre a tradição e uma reflexão de Jean Guitton sobre a dúvida, para terminar.

1. Como mel para a boca

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Fonte da fotografia: https://www.thefamouspeople.com/profiles/abbe-pierre-583.php

Em 1949, o Abbé Pierre fundava um albergue a que dava o nome de Emaús, referindo-se a uma das últimas cenas do Evangelho de São Lucas. Foi assim que começaram as “Associações Emaús”, que tornaram o Abbé Pierre uma figura proeminente da cultura francesa, à frente de muitos políticos, artistas e futebolistas…


2. Um texto bíblico

Esta semana, terminamos a nossa série de reflexões sobre a Ressurreição. A semana passada, acompanhávamos os dois discípulos e Jesus incógnito até Emaús. Eis aqui a conclusão dessa passagem:

Ao chegarem perto da aldeia para onde iam, fez menção de seguir para diante. Os outros, porém, insistiam com Ele, dizendo: «Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso.» Entrou para ficar com eles. E, quando se pôs à mesa, tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, entregou-lho. Então, os seus olhos abriram-se e reconheceram-no; mas Ele desapareceu da sua presença. Disseram, então, um ao outro: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?»  (Lc 24, 28-32)


3. O esclarecimento

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Rembrandt (1606-1669), Os peregrinos de Emaús (óleo sobre madeira, 1629) Museu Jacquemart-André, Paris

| Os Peregrinos de Emaús |

Este quadro de Rembrandt evoca a refeição narrada no nosso texto. Mas, relativamente ao texto de Lucas, há uma anomalia: há um único discípulo, em vez de dois.

Esta ausência de um dos dois discípulos do relato evangélico na pintura de Rembrandt não será um convite ao espectador para se sentar ele mesmo à mesa?

Mas é sobretudo o jogo de claro-escuro que é fascinante neste quadro. Na verdade, não se percebe de onde vem a luz que aparece entre as duas personagens retratados.

  • A primeira hipótese seria imaginar que este ponto de luz (uma vela, talvez?) está sobre a mesa. Estaria simplesmente ocultada pela silhueta de perfil que se vê em contra-luz, sem que se lhe veja o rosto.

Mas, aqui no PRIXM, preferimos uma outra interpretação:

  • Segundo esta segunda hipótese, a luz não viria de uma eventual vela sobre a mesa, mas da própria personagem que aparece em primeiro plano.

É um golpe de mestre! Ao ocultar este rosto, que é fonte de luz, o pintor obriga o espectador a descobri-lo através do olhar da outra personagem do quadro, que olha fixamente para ele, do outro lado da mesa.

Nós não vemos este rosto luminoso, vemos apenas o perfil que permanece na penumbra. Mas, como não ficar preso à estupefação daquele que vê este rosto de luz?

Através desta mise en scène, Rembrandt inicia o espectador na dinâmica que é própria da Tradição. Dá-se em três tempos, como uma valsa:

(1) Cristo revelou o seu rosto a um homem;

(2) este homem dá testemunho da sua estupefação;

(3) e esta experiência transforma-se numa história (e mesmo num quadro, como aqui).

O leitor desta história ou o espectador deste quadro só tem acesso à fonte de luz deste relato, a este rosto luminoso, através desta corrente que os une. Esta corrente, esta ligação, este acesso à verdade: é a isto que chamamos Tradição da Igreja!

Em resumo, esta cadeia de testemunhas transformou-se num Evangelho, depois num quadro… e agora nesta edição do PRIXM!


4. Uma palavra final 

Jean Guitton, claro, como sempre, justifica a sua convicção de que as dúvidas dos primeiros discípulos ao reconhecerem Jesus foram mesmo reais, e não uma invenção para sublinhar a fé, como defendem alguns autores:

“Sou levado a crer […] que estas dúvidas que manifestam as primeiras testemunhas da Ressurreição foram mesmo reais. Não vejo que interesse teriam os redatores destes relatos de as inventar. Se pretendiam trabalhar a fé destas primeiras comunidades, tão fervorosas, teria sido melhor inventar aparições mais claras e categóricas.

Os Judeus nunca tiveram problemas em recorrer à tradição profética e apocalíptica, onde abundam exemplos de visões que não dão lugar a quaisquer dúvidas. E, se os redatores acreditavam na divindade do Senhor, parece quase um insulto imaginar que Ele, revestido de todo o poder, ia aparecer às suas primeiras testemunhas de maneiras pouco claras, deixando-os na dúvida… ”
(Jean Guitton, Le problème de Jésus. Divinité et Résurrection, Paris : Aubier, 1953.)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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