Tempestades perfeitas

Num olhar sobre o que nos reserva 2019, Domingos de Andrade considera que votar, com consciência, com ponderação das escolhas, tem este ano não a relevância do ciclo eleitoral, mas do que queremos ser amanhã.

Num olhar sobre o que nos reserva 2019, Domingos de Andrade considera que votar, com consciência, com ponderação das escolhas, tem este ano não a relevância do ciclo eleitoral, mas do que queremos ser amanhã.

É a memória curta que tolda o caminho dos homens. Olhar para este ano que agora arranca é saber que os dados estão lançados. Uns com efeitos imediatos. Outros sem fronteira temporal, que se vão instalando no nosso quotidiano, impedindo-nos muitas vezes de ver com clareza. Não deixa por isso de ser um exercício carregado de agenda, mais previsível, mais tentador, mas também aquele que nos obriga a olhar para trás. Não há futuro sem passado e o passado, por ser maior e mais sábio, é sempre bom conselheiro.

Precisaremos muito dessas luzes em ano de eleições, europeias, legislativas e regionais. Tudo se mistura, porque são esses os condimentos desta pós-democracia que começamos a atravessar. O processo de saída do Reino Unido da construção europeia e as implicações futuras ainda mal mensuradas. A manipulação da opinião pública através das redes sociais.

O papel do jornalismo no escrutínio dos poderes e a falência da função de mediação, estando hoje a ser cimentada nos leitores a ilusão de que são eles que escolhem o que querem ler, ver, ou ouvir, quando na verdade esse domínio está entregue aos algoritmos e às opções que fazem por nós em função do que são os nossos gostos, amigos ou pesquisas.

Domingos de Andrade

Parece um discurso estafado, mas talvez nunca como agora tanto esteja em causa na construção do que somos como país e como europeus, quando parecemos perder as referências que dávamos como adquiridas.

Votar, com consciência, com ponderação das escolhas, tem este ano não a relevância do ciclo eleitoral, mas do que queremos ser amanhã. Não são inocentes os movimentos populistas que grassam no Mundo, com Trump e Bolsonaro, na vizinha Andaluzia, em Itália, na Polónia, na Hungria, ou algumas motivações no movimento dos “coletes amarelos”, em França. São discursos de incitamento ao ódio e que sob o manto da aparência da normalidade defendem a anormalidade. Cabe, a cada um de nós, defender princípios democráticos inalienáveis e hoje tão ameaçados em locais onde os julgávamos adquiridos.

E como indivíduos de um coletivo com uma tão reduzida capacidade de mobilização cívica, tão dependentes na ação de ciclos eleitorais, perceber onde é que podemos ir mais longe na intervenção social, assumindo que o nosso papel na vida pública não se pode esgotar num voto de dois em dois ou de quatro em quatro anos.

Ir mais longe obriga-nos também a olhar mais para este mundo em mudança. Da necessidade de lutar contra as desigualdades e pela redução da pobreza, aos problemas sociais que subsistem à escala global.

Ir mais longe obriga-nos também a olhar mais para este mundo em mudança. Da necessidade de lutar contra as desigualdades e pela redução da pobreza, aos problemas sociais que subsistem à escala global.

Domingos de Andrade

Os dados do passado também aqui estão lançados. E são inquietantes. Vale a pena recuar a 2013 e ir até Lampedusa, ilha italiana do Mediterrâneo, porto de abrigo ou de salvação para milhares de imigrantes que tentam chegar à Europa. Foi a primeira viagem apostólica do pontificado do Papa Francisco, que colocou as questões das migrações e dos pobres no centro da sua missão, pedindo um despertar das consciências para combater a “globalização da indiferença”. São seis anos de diferença na tentativa do Sumo Pontífice em reforçar as referências perdidas. E outros tantos de indiferença global, de que são faces visíveis a tentativa de construção pelos Estados Unidos de um muro no México e a Europa a fechar-se com medo de si própria.

A fuga à fome, às guerras e às alterações climáticas são a tempestade perfeita que fará, com mais consciência do que nunca, das migrações a grande questão deste e dos próximos anos. E não vale a pena pensar que esse é um problema dos outros. O mundo é um lugar demasiado pequeno para não cuidarmos dos vizinhos, próximos ou aparentemente distantes.

As escolhas políticas que fazemos e o papel cívico que tivermos são determinantes para construirmos o Mundo onde queremos viver. E essa não é uma questão de fé. É de responsabilidade.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.