Stephen Hawking: o desafiador de limites

O exemplo de Hawking é inspirador, sem dúvida, para quem enfrenta a doença na primeira pessoa. Ao mesmo tempo, a vida desafia-nos a não desistir de lutar por uma sociedade onde os frágeis possam ter um lugar.

O exemplo de Hawking é inspirador, sem dúvida, para quem enfrenta a doença na primeira pessoa. Ao mesmo tempo, a vida desafia-nos a não desistir de lutar por uma sociedade onde os frágeis possam ter um lugar.

Na passada quarta-feira, dia 14 de março, a internet e os meios de comunicação ofereceram uma longa ovação a Stephen Hawking, o físico Britânico que enfrentou com inspiradora bravura os obstáculos que a doença colocou no seu caminho. Diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica aos 21 anos, Hawking superou em mais de cinquenta anos a escassa esperança de vida que a medicina antecipava.

Hawking foi um homem em muitos aspetos excecional, e a tenacidade com que enfrentou a doença não é certamente o menor deles. Hawking foi capaz de fazer muito com pouco. É justo dizer que aproveitou ao máximo a sua vida, superando de forma improvável as limitações que a doença lhe foi impondo. Hawking não foi apenas um sobrevivente. Confinado à exiguidade de uma cadeira de rodas, soube aproveitar a sua vida ao máximo e fez render de forma extraordinária as capacidades que a doença não conseguiu roubar-lhe. O astrónomo Britânico Martin Rees captou de forma precisa o espanto e a admiração de todos nós: «Que triunfo foi a sua vida!». Paradoxalmente, a figura frágil do físico genial que sucedeu a Newton na sua cátedra e rivaliza com ele na popularidade, parecia-nos imortal: Hawking tornou-se um cidadão perene do nosso imaginário comum. A sua memória permanece como precioso estímulo para todos aqueles, e são tantos, que convivem com as limitações impostas pela doença. É possível fazer muito com pouco! A improvável longevidade de Hawking, e a fecundidade inspiradora da sua vida, são mérito próprio. Seria injusto, no entanto, não reconhecer que Hawking não poderia ter chegado tão longe sem toda a ajuda médica e tecnológica que ao longo dos anos foi recebendo. O exemplo de Hawking é inspirador, sem dúvida, para quem enfrenta a doença na primeira pessoa. Ao mesmo tempo, o exemplo da sua vida desafia-nos a não desistir de lutar por uma sociedade onde os frágeis possam ter um lugar.

Hawking foi extraordinário na sua persistência, mas não foi apenas a sua persistência que fez dele um homem extraordinário: o seu contributo para o progresso da física, na sua tentativa de desvendar os mistérios do universo que habitamos, é indiscutível. Nos seus primeiros anos de investigação na área da cosmologia, Hawking mostrou, juntamente com juntamente com Roger Penrose, que a teoria da relatividade geral, proposta por Albert Einstein em 1915, dá inevitavelmente origem a «singularidades» espácio-temporais – os famosos «buracos negros» –, nas quais colapsam as leis físicas vigentes no resto do universo. Hawking provou, também, que as equações da relatividade geral, conjugadas com o modelo cosmológico desenvolvido por Alexander Friedmann e que dá conta de um universo em expansão, implicam que o universo teve origem, também ele, numa singularidade.

Outro contributo importante de Stephen Hawking – a chamada «evaporação de buracos negros» – parece sugerir que os buracos negros não são, afinal, tão negros quanto se pensava. A razão pela damos o nome de «buracos negros» às singularidades espácio-temporais prende-se com a ideia de que os buracos negros, aos quais está associada uma «enorme» densidade de massa que provoca uma deformação «abrupta» do espaço-tempo, absorvem toda a matéria, e também toda a luz, que for além de uma distância crítica. Dado que só podemos «ver» os objetos que emitem algum tipo de radiação, as singularidades espacio-temporais, que se pensava não emitirem qualquer radiação, permaneceriam totalmente «invisíveis», ou seja, «negras» e daí o nome «buracos negros». De acordo com Hawking, os buracos negros não são, afinal, completamente negros. Tal como acontece em qualquer outro ponto do Universo, as flutuações quânticas que ocorrem na superfície dos buracos negros dão origem a pares de partículas e antipartículas. Quando a criação destes pares de partículas tem lugar na fronteira do buraco negro, pode acontecer que uma das partículas criadas seja capturada pelo buraco negro e a outra consiga escapar, dando origem ao que hoje à chamada «radiação de Hawking», que não foi ainda detetada experimentalmente. Este processo pode parecer inócuo, mas ao longo tempo poderia levar à dissolução do próprio buraco negro, por esgotamento da sua energia.

Os resultados científicos alcançados por Hawking configuram uma carreira científica brilhante. No entanto, o seu contributo para a física não se fica por aqui. Além de ser um físico brilhante, Hawking foi também um excecional divulgador de ciência. Na verdade, Hawking era uma espécie de ícone e embaixador da física. Não deixa de ser irónico que um homem incapaz de emitir voz, e que além disso não movia mais do que um dedo e alguns músculos faciais, tenha sido um dos maiores comunicadores de ciência do século XX. A ciência tem um papel crucial no mundo contemporâneo e Stephen Hawking contribuiu de forma significativa para a consolidação e expansão do seu prestígio.

Stephen Hawking soube habitar as fronteiras da ciência e por isso deu um contributo importante para lhe abrir novos horizontes. Não há dúvida de que a física contemporânea lhe deve muito. E, no entanto, precisamos precaver-nos contra a tentação de o converter numa espécie de «ídolo intelectual», aceitando acriticamente tudo o que disse, mesmo sobre temas em que não era especialista. Hawking foi um grande físico e um ser humano de extraordinária e inspiradora perseverança. Ao mesmo tempo, talvez seja justo reconhecer que filosófica e teologicamente Hawking não era particularmente dotado. Neste campo, as suas afirmações foram quase panfletárias. A sua convicção de que o progresso da ciência dispensa a existência de Deus era isso mesmo, uma convicção. E a sua confiança na capacidade da ciência para desvendar todos os mistérios da existência talvez pudesse ser classificada como ingénua. A este respeito, seria interessante assistir a um diálogo entre Stephen Hawking e Erwin Schrödinger, um dos pais da mecânica quântica e um dos grandes físicos do séc. XX, e para quem, nas suas próprias palavras, «a imagem científica do mundo é muito deficiente. Proporciona uma grande quantidade de informação sobre factos, reduz toda a experiência a uma ordem maravilhosamente consistente, mas guarda um silêncio sepulcral sobre tudo o que realmente nos importa. Não é capaz de dizer-nos uma palavra sobre o que significa o vermelho ou o azul (…), não sabe nada do belo e do feio, do bom e do mau, de Deus e da eternidade».

Hawking afirmou, não sem um toque de orgulho, que a morte não lhe metia medo: “não há céu ou vida pós-morte para os computadores avariados; isso é um conto de fadas para pessoas com medo do escuro”. Hawking nunca se resignou perante os limites que a doença ou as teorias físicas vigentes lhe queriam impor. Não posso deixar de lamentar que se tenha resignado diante do limite aparente da morte. Que pena que não tenha sido capaz de intuir que a morte, mais do que «buraco negro» que nos engole, é, afinal, uma passagem para a plenitude que assoma no horizonte da procura insaciável de vida e de verdade que animou a sua existência e que a todos nos habita.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.