Padres à maneira dos apóstolos

Nos nossos dias a Igreja pede à Companhia que se comprometa com um modelo de “evangelização integral”, que compreenda o seu carácter sacerdotal como serviço da fé e promoção da justiça, diálogo com a cultura e o cuidado da nossa casa comum

Nos nossos dias a Igreja pede à Companhia que se comprometa com um modelo de “evangelização integral”, que compreenda o seu carácter sacerdotal como serviço da fé e promoção da justiça, diálogo com a cultura e o cuidado da nossa casa comum

Este artigo foi  originalmente publicado em 2020 antes das ordenação sacerdotal de três jesuítas.

Escrevo num momento festivo em que três companheiros jesuítas, o António, o João e o Nelson, se preparam para ser ordenados padres, no próximo domingo, na Sé Nova de Coimbra. Em tempos, chamavam-se apóstolos aos jesuítas, a expressão “padres à maneira dos apóstolos”, de Manaranche, é bem encontrada e bem fundada para designar a vivência e a especificidade do sacerdócio na Companhia de Jesus. “A vocação primária de ser como os apóstolos marca desde o início a forma de ser sacerdote na Companhia de Jesus” – escreve o P. Kolvenbach.

“Padre” é uma designação de proximidade, refere um trato pessoal e paternidade espiritual que se adequa ao carisma inaciano. Com mais propriedade de linguagem diz-se “presbítero”: o líder da comunidade, que provê às suas necessidades, presta serviço; ou ainda “sacerdote”: aquele que oferece os sacrifícios. O termo sacerdote é incontornável apesar da ambiguidade bíblica e cultural a que o imaginário sacral do paganismo e das religiões o expõe, e que ciclicamente confunde na Igreja a dignidade humilde do apóstolo com o privilégio clerical.

De facto, o sacerdócio à maneira dos apóstolos é fundamentalmente “à imitação de Cristo”. Todas as figuras religiosas e culturais do padre, na sua legítima diversidade, têm n’Ele o seu critério e referência permanente. No entanto, Jesus não tinha legitimidade sacerdotal no judaísmo, pelo contrário, o Novo Testamento não dissimula, antes faz notar, o conflito entre Jesus e o Templo, os sacrifícios e os sacerdotes do seu tempo. Os primeiros cristãos preferem demarcar-se deste vocabulário, no entanto, a cristologia sacerdotal da Carta aos Hebreus e a eclesiologia sacerdotal da primeira Carta de Pedro, exploram uma legitimidade implícita, uma ideia radicalmente outra e cheia de novidade do sacerdócio de Jesus Cristo. Em toda a Sua existência, como na Última Ceia e na Cruz, Ele é o Único sacerdote, único mediador da comunhão n’Ele oferecida por Deus.

O único sacrifício eficaz é o dom existencial de si-mesmo em resposta ao dom do Pai, ação de comunhão definitiva entre o mistério de Deus e a humanidade, o que significa a abolição dos sacrifícios rituais das religiões, a separação ancestral e a necessidade de intermediários entre Deus e os homens. Doravante, todos os que acolhem o Dom de Deus, o Espírito de Cristo, participam na missão de Cristo sacerdote, profeta e pastor/rei. No entanto, é pela compreensão histórica e teológica da sacramentalidade da Igreja, da presença de Cristo e da eficácia atual dos seus gestos, transmitidos na tradição apostólica, que compreendemos de forma mais específica a dinâmica dos ministérios ordenados na Igreja.

Num profundo respeito pela liberdade da presença e ação de Deus no mundo, os jesuítas como sacerdotes dirigem-se ao cuidado da pessoa humana, interessam-se pelo que dá significado à vida mesmo num mundo secularizado, adotam uma atitude positiva de diálogo com outras tradições culturais, religiosas, morais e espirituais, prestam atenção aos excluídos da sociedade.

O carisma e espiritualidade que S. Inácio obteve para a Companhia de Jesus, o “ver a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”, a “contemplação na ação”, levam-nos a viver conscientemente uma certa amplitude do sacerdócio, enraizado tanto no “sacerdócio comum dos fiéis” como no “ministério sacerdotal”, integrando indissociavelmente a ação de Cristo de edificar a Sua Igreja, e de reconciliar toda a realidade consigo. O Concilio Vaticano II ratifica esta visão ao dizer que o sacerdote pertence ao corpo de Cristo que é a Igreja e nela exerce o ministério sacerdotal em nome de Cristo cabeça, ao serviço da Igreja e do mundo.

Assim, o sacerdócio não se esgota num “puro sacerdotal” como de vez em quando se pretende. O sacerdócio na Companhia insere-se nas Igrejas diocesanas, mas raramente se restringe à estrutura paroquial, mesmo quando o faz, preserva a amplitude e diversidade própria do seu carisma e missão apostólica, amplitude tão inaudita e criativa quanto o Espírito ditar. Os documentos fundacionais contemplam desde logo o ensino de crianças e rudes, ministérios de cariz social e da vida interior, missões entre os infiéis, etc.

Nos nossos dias a Igreja pede à Companhia que se comprometa com um modelo de “evangelização integral”, que compreenda o seu caráter sacerdotal como serviço da fé e promoção da justiça, diálogo com a cultura e cuidado ecológico da nossa casa comum. Num profundo respeito pela liberdade da presença e ação de Deus no mundo, os jesuítas como sacerdotes dirigem-se ao cuidado da pessoa humana, interessam-se pelo que dá significado à vida mesmo num mundo secularizado, adotam uma atitude positiva de diálogo com outras tradições culturais, religiosas, morais e espirituais, prestam atenção aos excluídos da sociedade. O discernimento das múltiplas solicitações de um mundo ferido é uma ferramenta do caminho, os seus critérios apontam para (1) as situações de maior necessidade, (2) onde se possa esperar maior fruto, e (3) um bem mais universal; com os pés na terra e atenção aos sinais do Espírito vivo na Igreja e no mundo.

Este domingo, D. Virgílio Antunes, Bispo de Coimbra, irá ordenar os nossos companheiros, com o simbolismo da imposição das mãos e pela oração, pedindo para eles o Espírito de santidade e o segundo grau da Ordem sacerdotal. A imposição das mãos é um belo gesto pelo qual Jesus abençoou as crianças (Mt 19,13; Mc 10,16), e os apóstolos significaram a receção do Espírito e conferiam funções e ministérios comunitários (2Tm 1,6). A função de santificar destes novos padres vai exercer-se principalmente pela tripla dimensão do (1) anúncio da Palavra, (2) da celebração da comunhão eucarística, e (3) do cuidado da comunidade cristã.

Esta responsabilidade inscreve-se nas suas vidas, preparados para serem padres desprendidos e cultivados vão, no entanto, perceber que a ordenação não faz desaparecer as suas fraquezas. Em certos momentos, os trabalhos e solicitações vão esgotar-lhes as forças e irão deparar-se com as suas incoerências e pecado. Estes podem, no entanto, ser momentos de graça pelos quais comprovamos, com S. Paulo, que “levamos um tesouro em vasos de barro para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não nosso” (2 Cor 4,7). Pecadores perdoados, chamados a ser apóstolos, farão pessoalmente a experiência de transcender quotidianamente as suas fraquezas pelo poder de Deus. Mas existe também um ciclo de regeneração. O tempo e a oração, a leitura e a reflexão, a experiência e o interesse da vida apostólica, a vida em comunidade e as amizades, a ajuda dos conselhos evangélicos, trarão a maturidade que a vocação requer, a realização do carisma pessoal e a serenidade interior. Sabemo-nos e sentimo-nos, à medida que a vida avança, cada vez mais nas mãos de Deus.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.