Oh… vamos ficar sem Missa?! Ou talvez não.

Houve muitas coisas más mas vimos como o bem se manifestou, pronto a vencer, como comprova a ressurreição. Testemunhámos essa verdade em tantos sinais de vitória sobre o egoísmo, o mal e a morte.

Houve muitas coisas más mas vimos como o bem se manifestou, pronto a vencer, como comprova a ressurreição. Testemunhámos essa verdade em tantos sinais de vitória sobre o egoísmo, o mal e a morte.

É a tarde de 12 de março… Está programada uma reunião à noite com os agentes pastorais. Crisma marcado para domingo com dezenas de jovens a preparem-se para a grande festa. Uma semana intensa, repleta de visitas, encontros e reuniões. Estamos em plena visita pastoral do bispo à paróquia. A primeira na história de 29 anos da comunidade.

Entretanto, os telefonemas e mensagens vão chegando. “P. Nuno, sempre há reunião? “Haverá Crisma?” As questões dos paroquianos, em especial dos pais de crianças e jovens da catequese, acusam a preocupação crescente. O que vai ser? Avançamos? Teremos Missas?

No dia 13 cai a bomba. Um vírus microscópico instala-se, como um terramoto, e obriga-nos a mudar a rota, a entrar em confinamento. A Igreja, assumindo a sua responsabilidade, dá de imediato o exemplo e convida-nos a ficar em casa, transformando a quarentena forçada numa quaresma reforçada. Na última missa que celebro, depois de explicar a situação e apresentar as novas orientações, uma senhora, já muito idosa, comenta, tristonha: “Vão acabar as missas…”

A tragédia está anunciada. De um dia para o outro, cessam as reuniões, deixa de haver missas, interrompe-se a visita pastoral, não há crisma. As cadeiras para as reuniões com o Bispo ficam no mesmo lugar… vazias… durante semanas. Não se encontra vivalma. Fica o silêncio a encher o edifício. Nunca tal se havia visto. As portas das igrejas estão fechadas.

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P. Nuno Westwood celebrou diariamente a eucaristia em direto na internet.

Os primeiros dias parecem anunciar só uma ‘gripezinha’ que, em breve, irá passar, por isso, ainda saímos à rua sem grandes medos. Mas vem o estado de emergência que obriga à clausura quase total. “Fica em casa” – o mote repetido vezes sem conta. E, de dia para dia, crescem os números associados à pandemia que, afinal, de tão longe, chega cá. Entra o medo pelas portas de casa. As dúvidas e incertezas são mais do que muitas. Há todo um vocabulário novo a dominar as nossas conversas… Mas se fossem só as palavras… Há também apetrechos novos que se colam ao quotidiano: máscaras, álcool gel, testes. E há ainda as perguntas… sim, as perguntas existenciais. Essas são muitas e vão fundo, inquietam e revelam a incerteza em relação ao futuro: E a escola? Quem toma conta dos miúdos? Entro em layoff? Vou para o desemprego? Tenho stock de alimentos? Estarei infetado?

Pensamos, sobretudo – pois talvez seja essa grande periferia destas paróquias – na dor dos irmãos mais idosos que estão sozinhos. Apesar de ser para o seu próprio bem, a distância física passa a norma obrigatória e fica o desamparo da solidão.

Também na vida paroquial surgem imensas interrogações que evito contar para não estender esta narração. Mas são legítimas e próprias de quem ama a causa que abraça. Como vamos fazer agora? Como será o futuro? A Igreja vai manter-se fechada?

Dá para perceber que o que acontece a um de nós, acontece a todos. Diz o Papa Francisco, a 27 de março: “Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos”.

Apesar deste texto parecer suave, não quero banalizar a realidade nem ignorar as inúmeras provações que invadiram sem licença as nossas casas e nos viraram a vida do avesso. Com o Papa a interpelar-nos, passamos a ter presente, na nossa oração, todos os irmãos em sofrimento. Pensamos, sobretudo – pois talvez seja essa grande periferia destas paróquias – na dor dos irmãos mais idosos que estão sozinhos. Apesar de ser para o seu próprio bem, a distância física passa a norma obrigatória e fica o desamparo da solidão.

Vemo-nos forçados ao enclausuramento. Mas esta renúncia e esvaziamento afetivo é um ato de amor. Há distância física, mas não afastamento social. Talvez já há muito tempo não estivéssemos tão perto e atentos. Até na oração passamos a cuidar melhor uns dos outros.

E da oração, fundamental para nos unir à fonte da vida e ajudar a discernir, passamos à ação. Rapidamente surgem voluntários, formam-se equipas, para ir às compras e fazer entregas em casa, bem como outros serviços essenciais. Os grupos já existentes reinventam-se para manter o apoio alimentar às famílias carenciadas, visitar os doentes e idosos, agora fazendo companhia à janela, os ministros da comunhão mantêm as escalas e, agora pelo telefone, fazem com os irmãos uma oração e partilha da palavra. Deste cuidado aos mais frágeis, surgem outros apoios: na saúde, a nível psicológico, aconselhamento jurídico, até apoio informático para combater a infoexclusão.

Vão surgindo iniciativas criativas para ajudar famílias em dificuldades. A comunidade mobiliza-se e é criado um fundo solidário: para dar casa a um sem-abrigo, apoio médico, pagar dívidas, entre tantas outras carências. Recordo com especial gratidão a iniciativa de Sílvia, uma paroquiana que gosta de correr. Nunca o tinha feito, mas para ajudar um doente oncológico, faz uma maratona completa: numa manhã de sábado, durante seis horas, dá mais de 150 voltas à sua rua. Eu vou transmitindo online, quem assiste, tocado por tanta generosidade, quer competir em igual cuidado, e dá um donativo. No final, são angariados 6000 euros.

Vive-se intensamente a Semana Santa, com um retiro de três dias seguido do tríduo pascal e uma celebração penitencial, uma peregrinação pelo coração a Fátima juntando mais de 250 pessoas durante cinco dias, um terço em maio, animado pelos diversos grupos pastorais. Anunciamos Cristo ressuscitado na visita pascal no domingo de Páscoa e Fátima vem até nós no dia 13, percorrendo com a sua imagem as ruas das paróquias.

As atividades vão surgindo para que ninguém se sinta desamparado e só. E quando tudo anunciava uma desgraça antecipada, surgem desafios que mobilizam e animam a comunidade. Destaco os arco-íris da esperança pintados pelas crianças, as fotografias com um olhar pascal da janela de cada casa, os vídeos gravados a agradecer apoios concretos, e, mais recentemente, a partilha da banda sonora da quarentena. Surge ainda a iniciativa da arte solidária online cujas receitas revertem, em 50%, para o fundo paroquial.

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Pároco da Unidade Pastoral de Nova Oeiras e São Julião da Barra desafiou paroquianos a partilharem um olhar pascal captado através da janela.

Não falta, claro, o acompanhamento espiritual. Além das conversas frequentes ao telefone, mantém-se o apoio aos doentes, a assistência aos funerais e a reconciliação… sempre cumprindo rigorosamente as normas sanitárias. Sente-se claramente a busca de Deus e a necessidade de partilhar a fé. Surgem grupos de oração, de WhatsApp, tantas outras vivências por Zoom, Webex, Facebook ou Youtube. E há toda uma comunidade que, aos poucos, se vai reencontrando em tantos momentos de partilha de fé. Vive-se intensamente a Semana Santa, com um retiro de três dias seguido do tríduo pascal e uma celebração penitencial, uma peregrinação pelo coração a Fátima juntando mais de 250 pessoas durante cinco dias, um terço em maio, animado pelos diversos grupos pastorais. Anunciamos Cristo ressuscitado na visita pascal no domingo de Páscoa e Fátima vem até nós no dia 13, percorrendo com a sua imagem as ruas das paróquias.

E porque é “a fonte e cume da vida cristã”, não falta a celebração diária da Eucaristia transmitida online e com uma participação, sobretudo à semana, bem acima do habitual. Afinal, as missas não acabaram! Isto permite manter a comunidade unida, o sentido de Igreja, sobretudo, nos momentos que estamos unidos ao nosso Bispo e ao Papa.

A nossa casa passa de um lugar a habitar para ser também um local de estudo e de trabalho, de catequese e templo de uma liturgia mais familiar, verdadeira Igreja doméstica. E desta forma tornamos possível o ousado convite de Jesus que se torna hoje bem real: “é em tua casa que eu quero celebrar a Páscoa” (Mt 26,18).

Curiosamente, quando tudo parece indicar que a Igreja ficará fechada, percebemos, melhor do que nunca, que fechadas estão apenas as portas do templo porque a Igreja somos todos nós, participantes da vida em Cristo ressuscitado. Na verdade, a Igreja está sempre de coração escancarado a cuidar dos seus. Sem cair em ilusões estéreis, estou em crer que esta pandemia descodificou o sinal das igrejas vazias ou de portas fechadas. Afinal, “Jesus já está dentro de nós, batendo para que O deixemos sair” (EG 136). Julgo que foi o que Ele acabou de fazer à Igreja, convertendo-a numa “Igreja em saída” (EG 49), num “hospital de campanha”, uma «obra da rua», uma comunidade entrosada com a vida das pessoas.

São os rebentos do mundo novo que a ressurreição de Cristo foi produzindo por toda a parte. Houve muitas coisas más nesta pandemia, mas vimos como o bem se manifestou e pronto a vencer, como nos comprova a ressurreição. Testemunhámos essa verdade em tantos sinais vitais de vitória sobre o egoísmo, sobre o mal e a morte, através da vivência da generosidade, do serviço e da gratuidade que ajudaram a humanidade a mostrar o melhor de si mesma.

Curiosamente, quando tudo parece indicar que a Igreja ficará fechada, percebemos, melhor do que nunca, que fechadas estão apenas as portas do templo porque a Igreja somos todos nós, participantes da vida em Cristo ressuscitado. Na verdade, a Igreja está sempre de coração escancarado a cuidar dos seus.

Voltámos a experimentar Jesus Ressuscitado. Como os discípulos, após a Ascensão, aprendemos que a proximidade pessoal de Jesus se faz, não fisicamente, mas pelos fios de uma rede de relações fraternas tecida entre eles e na comunhão permanente com os mais frágeis. Jesus manifesta-se, toca-se, vive-se sempre quando dois ou três se “reúnem” em seu nome (cf. Mt 18,20) e cuidam do seu próximo (cf. Mt 25,40).

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P. Nuno Westwood visitou as famílias das suas paróquias, levando-lhes Jesus no Santíssimo Sacramento.

A pandemia precipitou mudanças que muito a custo tentamos fazer. Apesar das nossas resistências, acabaram por acontecer. Fizeram-nos experienciar o que ninguém jamais pensara. Milhões de pessoas, ainda confinadas em suas casas, têm de repensar o futuro. Para todos há um “novo normal” que suscita respostas urgentes e a ousadia criativa para não voltarmos ao “fez-se sempre assim” (EG 33). A força da ressurreição, que emerge dos escombros da morte (cf. EG 276), desperta em nós um novo modo de ver e de viver a vida.

Reconhecemos que, certamente, houve muita fragilidade e inexperiência, vimos que a Igreja esteve presente na hora certa, foi portadora da esperança e mestra na arte de consolar. Esteve e está próxima, continuou a acompanhar as nossas solidões e voltou a ensinar-nos a importância de estarmos juntos também nas horas de crise. Foi refúgio, lugar de encontro e espaço de fraternidade.

Os cristãos acreditam que as crises podem ser o estremecer que anuncia a gestação de uma nova humanidade, pois abrem-nos a novas possibilidades. A experiência do limite convida-nos a experimentar outras passagens para ver o amanhecer das nossas vidas.

Na verdade, quando tudo parece desmoronar-se, o apelo ao essencial torna-se urgente. Isso implica enfrentar o que nos torna decisivamente humanos, como as palavras, o cuidado com os outros ou a abertura à transcendência. Os cristãos acreditam que as crises podem ser o estremecer que anuncia a gestação de uma nova humanidade, pois abrem-nos a novas possibilidades. A experiência do limite convida-nos a experimentar outras passagens para ver o amanhecer das nossas vidas. Se vivemos assim dois meses, porque não o conseguiremos, livremente, durante muito mais tempo?

Que isso nos permita recuperar “o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com o Criador” (Papa Francisco, Laudato Si, 210). Assim será possível sair de outra forma, sair com a alegria da esperança como conquista alcançada e horizonte a nunca mais perder.

E não é que, habituados à Missa online, já com muitos irmãos fiéis à transmissão diária, ouvi o mesmo desabafo: “Oh, vão acabar as Missas [online]”?!… Pensando já num novo Pentecostes, disse-lhe de sorriso rasgado: “Não, minha irmã, a Missa não acaba!”. Nem a Missa, nem a missão!

Fotografia de capa: AFP

Outras fotografias: Unidade Pastoral Nova Oeiras e São Julião da Barra

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.