O ruído tira-nos a tranquilidade

Como é que a quarentena trouxe um novo modo de viver a Quaresma? É a esta pergunta que Diogo Alarcão responde neste testemunho.

Como é que a quarentena trouxe um novo modo de viver a Quaresma? É a esta pergunta que Diogo Alarcão responde neste testemunho.

Nesta Quaresma, tão diferente do que estávamos habituados e tão mais desafiante do que podíamos imaginar, o ruído não me tem ajudado a viver os propósitos que fiz quando, na Quarta-Feira de Cinzas, com humildade e medo (de mais uma vez falhar) curvava a cabeça perante o altar.

Nesse dia, estava longe de imaginar que a COVID 19 provocasse tanta disrupção, tanta incerteza, tanto medo… e tanto ruído. A minha preocupação era rezar a melhor forma de viver o jejum, a oração e a esmola nos 40 dias que me separavam da Páscoa.

Agora, a mais de meio do caminho, estou triste ao ver como a avalanche de notícias, a catadupa de artigos de opinião, as decisões políticas e as suas consequências, o alarme social, a proliferação de grupos de whatsapp, o tele-trabalho (com um crescimento exponencial de e-mails praticamente impossível de gerir) não me estão a deixar viver a Quaresma que queria. Até a Missa, celebrada e transmitida por YouTube, é constantemente interrompida por comentários e agradecimentos que compreendo e não julgo porque sei que precisamos de ouvir os outros, de nos ouvir e de garantir que não estamos sós neste momento de incerteza e medo. Não julgo nem condeno, mas deixo-me distrair afastando-me do essencial.

 

Nesse dia, estava longe de imaginar que a COVID 19 provocasse tanta disrupção, tanta incerteza, tanto medo…

 

Mas hoje, ao acabar de assistir à Missa em comunhão com a Comunidade Inaciana, senti-O mais perto. A Sua presença silenciosa trouxe-me calma e a vontade de recomeçar o caminho da Quaresma que, entretanto, tinha de certa forma esquecido e abandonado.

É no silêncio, difícil quando estamos todos a viver em espaços mais ou menos confinados, que procurarei a Sua força e o Seu conselho até à Páscoa.

Talvez se deixar de ver todos os noticiários, de ler todos os artigos, de partilhar todos os Whatsapp, talvez assim encontre espaço para regressar ao silencio e à Quaresma. Este será o meu novo propósito até à Páscoa. Quero abrir espaço no meu coração para O ouvir e compreender o que Ele espera de mim e assim procurar recentrar o caminho no jejum, na oração e na esmola.

O jejum pode começar desde já por dar menos espaço ao ruido que me rodeia e que me distrai. Como? Cedendo à tentação de querer saber e partilhar tudo. Ao fazê-lo darei certamente mais espaço para, no silêncio, rezar mais. Acredito que este jejum também poderá ajudar a contrariar o alarme social e a proliferação de partilhas e repartilhas. Diminuindo o ruído (meu e dos outros) poderei construir bolsas de tranquilidade.

Parece-me que também na esmola, os tempos que vivemos nos afastam da Quaresma. É verdade que são vários os bons exemplos de iniciativas e organizações que, apesar das dificuldades, continuam a trabalhar junto dos mais desfavorecidos. Aqui em Lisboa, e dando apenas dois exemplos relacionados com os sem-abrigo, sei que a Associação João 13 e a Comunidade Vida e Paz não baixaram os braços. Estou certo que muitos mais, pela cidade e pelo País, continuam este trabalho junto dos pobres, dos mais velhos e das crianças institucionalizadas. Mas, infelizmente vi também as corridas aos supermercados (ainda ninguém me conseguiu explicar a obsessão pelo papel higiénico, mas estou certo que algum sociólogo o fará em breve), às farmácias e a todo um conjunto de “gadgets” relacionados com a COVID 19.

 

Advinham-se tempos de enormes privações, sofrimento, desemprego e fome em que a nossa generosidade será posta à prova, de uma forma como, muito provavelmente, nunca imaginámos.

 

Creio que um bom propósito para este final de Quaresma será começarmos a pôr de lado aquilo que não estamos a consumir em restaurantes, cinemas, roupa e viagens para partilhar por todos aqueles que irão necessitar da nossa ajuda de aqui a umas semanas ou meses quando os efeitos económicos da situação que estamos a viver se fizerem sentir na economia, em geral, e nas empresas em particular. Advinham-se tempos de enormes privações, sofrimento, desemprego e fome em que a nossa generosidade será posta à prova, de uma forma como, muito provavelmente, nunca imaginámos. Será, pois, bom irmos preparando os nossos corações para gestos de partilha extrema que teremos que ter uns com os outros.

Por último, e não menos importante, a oração. Jejuando em atitudes e preparando o meu coração para a partilha terei certamente mais tranquilidade e necessidade de oração. Também aqui a COVID19 nos desafia. Sim, são assustadoras e inexplicáveis as mortes em Itália ou Espanha, bem como noutros países que infelizmente se seguirão, e as minhas orações vão certamente para aqueles que já partiram. Mas é também necessário continuar a rezar por tantas outras mortes a que nos habituámos e que por vezes já não nos lembramos: as mortes no Mediterrâneo dos que sonham com uma vida melhor; as mortes dos que fogem das guerras e da violência; as mortes causadas pela fome ou pela exploração humana. Creio que o ruído provocado pela situação que vivemos está a centrar-nos muito em nós próprios e numa Europa que se pensava protegida de todos os males. Do meu lado, continuarei a rezar pelos que morrem por cá, mas rezarei igualmente por todas as “outras mortes” esquecidas nas noticias do dia.

É importante rezar por aqueles por quem ninguém reza.

Peço ao silêncio que me traga de volta a alegria do jejum, a riqueza da esmola e a força da oração.

 

Fotografia de  @chairulfajar_ – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.