O legado do Padre Adolfo Nicolás

Faz amanhã dois meses que morreu o Padre Adolfo Nicolás, antigo Superior Geral dos Jesuítas. Neste texto publicado por Christopher Pramuk, na America Magazine, faz-se um balanço do legado que deixa à Companhia e ao mundo.

Faz amanhã dois meses que morreu o Padre Adolfo Nicolás, antigo Superior Geral dos Jesuítas. Neste texto publicado por Christopher Pramuk, na America Magazine, faz-se um balanço do legado que deixa à Companhia e ao mundo.

A 20 de maio de 2020, após uma longa doença, Adolfo Nicolás, S.J., antigo superior geral da Companhia de Jesus, faleceu em Tóquio. Carinhosamente conhecido como “Adolfo” pelos seus amigos e “Nico” pelos Jesuítas da região Ásia-Pacífico, o Padre Nicolás foi eleito superior geral na 35.ª Congregação Geral da Companhia de Jesus, a 19 de janeiro de 2008. Oito anos mais tarde, a sua demissão foi aceite pela Congregação Geral 36, e o seu sucessor, Padre Arturo Sosa, foi eleito. Após a morte do Padre Nicolás, o Padre Sosa descreveu o seu antecessor como “um homem sábio, humilde e livre. Total e generosamente entregue ao serviço; comovido por aqueles que sofrem no mundo, mas ao mesmo tempo transbordante de uma esperança nascida da sua fé no Senhor Ressuscitado. Um excelente amigo, que gostava de rir e de fazer rir os outros; um homem do Evangelho. É uma bênção tê-lo conhecido”.

Apesar de não ter conhecido pessoalmente o Padre Nicolás, como teólogo católico leigo que ensina numa universidade dos Jesuítas, sinto-me como se tivesse perdido um querido mentor e amigo. Talvez mais do que qualquer outra figura da Companhia de Jesus nos últimos anos, incluindo o Papa Francisco, o Padre Nicolás influenciou o meu pensamento sobre a imaginação inaciana, o futuro da educação dos Jesuítas e os desafios à formação da fé cristã dos jovens do nosso tempo.

Estou muito reconhecido ao Padre Nicolás por ter recentrado o papel desempenhado pela imaginação na educação própria dos Jesuítas e na formação intelectual e espiritual da pessoa na sua totalidade. O seu amor pelo Japão e o respeito que tinha pela cultura budista exemplificam um compromisso de amizade inter-religiosa e, não por acaso, reforçam a sua ênfase nas raízes contemplativas da espiritualidade inaciana. Os seus discursos e entrevistas, muitos disponíveis online, continuam a inspirar, desafiar e agitar o meu coração como educador e seguidor de Cristo. Em suma, também para mim, “é uma bênção tê-lo conhecido”.

A reflexão que se segue é uma expressão da minha gratidão pelo serviço do Padre Nicolás à Companhia de Jesus e ao povo de Deus. Expressa ainda o meu desejo de cativar mais atenções sobre a sua vida e pensamento. Falo principalmente por mim, mas talvez também pelos meus colegas leigos em todo o mundo que são abençoados por serem colaboradores no ensino secundário e superior da Companhia de Jesus. E, uma vez que a música surge repetidamente como uma tónica durante os seus anos como general superior, adoto uma metáfora musical para sugerir três “movimentos” chave na sinfonia abrangente que é o seu legado como líder da Companhia de Jesus.

1. Primeiro Movimento: Profundidade de Pensamento e Imaginação

Em 2010, no seu discurso de referência na Cidade do México para educadores jesuítas de todo o mundo, “Profundidade do Pensamento e da Imaginação”: Desafios ao Ensino Superior Jesuíta hoje”, o Padre Nicolás começa por confrontar os “efeitos nefastos” na formação intelectual e espiritual dos jovens criados pelo “complexo novo mundo interior criado pela globalização”. Antes de se dirigir à pedagogia dos Jesuítas ou a uma visão inaciana sobre a educação, o Padre Nicolás olhou profundamente, com o seu público, para o contexto cultural que os jovens de hoje dão por adquirido, de modo a compreender os desafios que enfrentam antes de entrarem na sala de aula dos jesuítas. A sua surpreendente descrição do que ele chama de “a globalização da superficialidade” merece ser longamente citada:

Quando se pode aceder a tanta informação, tão rapidamente e de forma tão indolor; quando se pode expressar e publicar para o mundo as próprias reações, tão imediata e impensadamente, nos blogs ou microblogs; quando a última coluna de opinião do New York Times ou El Pais, ou o último vídeo viral pode ser difundido tão rapidamente para pessoas a meio mundo de distância, moldando as suas perceções e sentimentos, então o trabalho laborioso e meticuloso do pensamento sério e crítico entra frequentemente em curto-circuito. Pode-se “cortar e colar” sem a necessidade de pensar criticamente ou escrever com precisão ou chegar às próprias conclusões cuidadosamente.

Quando as belas imagens dos sonhos dos comerciantes de sonhos consumistas inundam os ecrãs dos computadores, ou quando os sons feios ou desagradáveis do mundo podem ser evitados por meio de um leitor de música MP3, então a visão, a perceção da realidade e o desejo podem permanecer superficiais… (Padre Nicolás)

Quando as belas imagens dos sonhos dos comerciantes de sonhos consumistas inundam os ecrãs dos computadores, ou quando os sons feios ou desagradáveis do mundo podem ser evitados por meio de um leitor de música MP3, então a visão, a perceção da realidade e o desejo podem permanecer superficiais… Quando se está sobrecarregado com um pluralismo tão vertiginoso de escolhas e valores e crenças e visões de vida, então pode-se facilmente cair na superficialidade preguiçosa do relativismo ou na mera tolerância dos outros… em vez de se envolver no trabalho árduo de formar comunidades de diálogo que buscam a verdade e a compreensão. É mais fácil fazer o que outros nos dizem para fazer do que estudar, rezar, arriscar, ou discernir uma escolha.

Note-se a ênfase dada pelo Padre Nicolás ao “mundo interior” forjado pelos hábitos e processos endémicos da nossa paisagem tecnológica globalizada, como eles podem moldar “a visão de cada um, a perceção da realidade, o desejo de cada um”. Na medida em que os jovens passam tanto do seu tempo em mundos tecnológicos virtuais, eles (e nós juntamente com eles) arriscam-se a sucumbir a “um processo de desumanização que pode ser gradual e silencioso, mas muito real”. As pessoas estão a perder a sua casa mental, a sua cultura, os seus pontos de referência. Creio que, acima de tudo, o Padre Nicolás se preocupa que perceções superficiais e parcelares da realidade nos tornem quase incapazes de “sentir compaixão pelo sofrimento dos outros”. No lugar da empatia, vemos um “reinado incontestado de fundamentalismo, fanatismo, ideologia, e muitos outros escapes do exercício de pensar que, mais tarde, causam sofrimento a tantos”.

Neste ponto do discurso, o Padre Nicolás avança com uma descrição do modo inaciano de conhecer. Trata-se de uma forma de proceder, tanto dentro como fora da sala de aula, que visa “promover de novas formas criativas a profundidade de pensamento e imaginação, que são marcas distintivas da tradição inaciana”. Trata-se de uma das descrições mais claras e comoventes que alguma vez li sobre a visão inaciana da educação como formação espiritual. Diz o seguinte:

A imaginação inaciana é um processo criativo que vai até à profundidade da realidade e começa a recriá-la. A contemplação inaciana é uma ferramenta muito poderosa, e é uma deslocação do lado esquerdo do cérebro para o direito. Mas é essencial compreender que a imaginação não é o mesmo que a fantasia. A fantasia é uma fuga da realidade, para um mundo onde criamos imagens em nome de uma diversidade de imagens. A imaginação agarra a realidade.

Por outras palavras, a profundidade do pensamento e da imaginação na tradição inaciana envolve um profundo envolvimento com o real, recusando deixar a realidade escapar, até chegar ao que está mais além da superfície. É uma análise cuidadosa (desmembramento) em prol de uma integração (recordação) em torno daquilo que é mais profundo: Deus, Cristo, o Evangelho. O ponto de partida, portanto, será sempre o que é real: o que é materialmente, concretamente pensado para lá estar; o mundo tal como o encontramos; o mundo dos sentidos tão vividamente descritos nos Evangelhos; um mundo de sofrimento e necessidade, um mundo quebrado com muitas pessoas quebradas e a precisar de cura. Começamos por aí. Não fugimos de lá. E depois Inácio guia-nos a nós e aos estudantes que seguem a pedagogia dos Jesuítas, do mesmo modo que guiava aqueles que faziam os seus retiros: ajudando-os a entrar nas profundezas dessa realidade. Para além do que pode ser percebido mais imediatamente, ele leva-nos a ver a presença e ação escondida de Deus naquilo que é visto, tocado, cheirado, sentido. E esse encontro com aquilo que é mais profundo, muda a pessoa.

Uma vez que nos envolvemos com a realidade, juntamente com os nossos alunos, sugere o Padre Nicolás, desperta nos seus corações um profundo desejo de responder, ou seja, um anseio por assumir a responsabilidade pela realidade, nas suas tristezas e alegrias, nos seu quebrantos e na sua beleza.

Uma vez que nos envolvemos com a realidade, juntamente com os nossos alunos, sugere o Padre Nicolás, desperta nos seus corações um profundo desejo de responder, ou seja, um anseio por assumir a responsabilidade pela realidade, nas suas tristezas e alegrias, nos seu quebrantos e na sua beleza. Além do mais, há um aspeto profético implícito na insistência do Padre Nicolás em envolver-se com a realidade concreta; um aspeto que deve estar presente em qualquer forma de educação que aspire a ser cristã, católica e seguir o modo de proceder próprio da Companhia de Jesus. Tal como o Dr. Martin Luther King Jr. respondeu da prisão de Birmingham às críticas públicas sobre as táticas assumidas por parte de colegas pastores cristãos, a educação inaciana deve desafiar os seus estudantes com perguntas incómodas: “Os nossos irmãos e irmãs estão a sofrer terrivelmente os golpes da injustiça. Eu estou a seu lado aqui em Birmingham. Onde estás tu?”

Para o Padre Nicolás, “encontrar Deus em todas as coisas” no contexto da educação é mais precisamente encontrar Deus em todas as coisas, dentro e fora da sala de aula. Na vida universitária, tendemos a moldar-nos como aqueles que procuram. Procuramos perseguindo a verdade, novos conhecimentos e, em última análise, o mistério de Deus. Já o Padre Nicolás, com base na sua experiência de vida e nas intuições de Santo Inácio, oferece uma profunda inversão [deste paradigma de procura]: é Deus que nos procura a nós com a paixão do Amado. Assim, a finalidade da educação dos Jesuítas é acompanhar os estudantes em direção a esta questão: Como é que Deus nos está a encontrar com o seu chamamento, convidando-nos a ver, julgar e agir a partir desta situação histórica concreta?

O mundo “secular”, por outras palavras, não está em nenhum espaço cultural “lá fora”. É o ar que todos respiramos, aqueles de nós que pertencem a igrejas, sinagogas e mesquitas e aqueles inumeráveis jovens adultos que se identificam como “espirituais mas não religiosos”. Implicitamente, o Padre Nicolás exorta todos os responsáveis pela educação religiosa na igreja a não perder de vista o fundamental: a nossa vocação, precisamente no meio da cidade secular, para ajudar os jovens a discernir e responder à presença oculta de Deus no mundo, chamando-nos à sua renovação.

2. Segundo Movimento: Um Novo Tipo de Humanidade que é Musical

Numa celebração de 2016, marcando o primeiro centenário da Universidade Sophia, dirigida pelos jesuítas no Japão, o Padre Nicolás ofereceu alguns comentários notáveis sobre a fé religiosa, que foram largamente ignorados pelos meios de comunicação católicos. A religião, sugeriu o Padre Nicolás, não é tanto um código de doutrinas e ensinamentos morais como uma sensibilidade às dimensões de “transcendência, profundidade, gratuidade e beleza” que subjazem às nossas experiências humanas. Comparando a experiência religiosa à apreciação pelas complexidades e variações da música clássica, o Padre Nicolás afirmou: “A religião é antes de tudo muito mais parecida com um sentido musical do que um sistema racional de ensinamentos e explicações“. Dirigindo-se aos jesuítas e educadores leigos de todo o mundo, ele continuou:

Nós não estamos na educação para fazer proselitismo, mas para a transformação. Queremos formar um novo tipo de humanidade que seja musical, que retenha essa sensibilidade à beleza, ao bem, ao sofrimento dos outros, à compaixão. Mas é claro que esta é uma sensibilidade que hoje é ameaçada por uma mentalidade puramente económica ou materialista, que mata esta sensibilidade à dimensão mais profunda da realidade. Assim como este sentido musical pode ser corroído e enfraquecido pelo barulho, pelo ritmo, pelas autoimagens do mundo moderno e pós-moderno, o mesmo acontece com a sensibilidade religiosa.

“Seria uma tragédia se as nossas universidades simplesmente replicassem a racionalidade e auto compreensão do nosso mundo secular, materialista. A nossa razão de estar na educação é completamente diferente”. (Padre Nicolás)

Retomando os desafios previamente lançados na Cidade do México, o Padre Nicolás sugeriu que “a missão hoje deve, antes de tudo, trabalhar para ajudar as pessoas a descobrir ou redescobrir este sentido musical, esta sensibilidade religiosa, esta consciência e apreciação das dimensões da realidade que são mais profundas do que a razão instrumental ou as conceções materialistas da vida nos permitem“. Tocou então cautelosamente numa corda que será familiar a qualquer pessoa comprometida com a vida das universidades da Companhia de Jesus: “Seria uma tragédia se as nossas universidades simplesmente replicassem a racionalidade e auto compreensão do nosso mundo secular, materialista. A nossa razão de estar na educação é completamente diferente”.

Eu já tinha gostado do Padre Nicolás antes deste discurso, mas depois dele, comecei a amá-lo. Continuo a ser desafiado pelas suas palavras. O que nos estará ele a comunicar quando nos convida a formar “um novo tipo de humanidade que seja musical”? A resposta, creio, está intimamente relacionada com outro tema que ecoa ao longo do seu mandato de Superior Geral dos Jesuítas: a sua insistência em que as pessoas em todo o lado anseiam hoje por recuperar espaços de silêncio, um “gosto pelo silêncio” no meio das nossas vidas atarefadas e muitas vezes demasiado estimuladas. Numa entrevista emocionante ao The Jesuit Post de 2013, o Padre Nicolás disse que a “educação dos nossos corações“, e o caminho para formar “um novo tipo de humanidade”, começa no silêncio. “A capela que carregamos dentro de nós mesmos, o tempo todo, não? E não precisamos de ter paredes e capelas e todo o tipo de coisas. Podemos viver em grande simplicidade no meio das pessoas e ainda assim ser portadores de silêncio”.

“No meio do barulho”, diz o Padre Nicolás, “podemos criar um espaço de silêncio”. Ao fazê-lo, especialmente nas nossas salas de aula, em todas as disciplinas, oferecemos um presente para toda a vida, uma prática espiritual centrada aos nossos alunos.

Com uma lente caracteristicamente jesuíta de grande ângulo sobre a situação humana global, o Padre Nicolás está a chamar a nossa atenção para um profundo mal-estar espiritual na raiz da atual situação humana. Está a oferecer uma forma contemplativa de proceder fundamentada na espiritualidade inaciana – mas de modo algum enclausurada em si mesma – para a recuperação da nossa humanidade mais profunda. A música serve aqui como metáfora orientadora de uma forma de ouvir profundamente e responder à realidade que vai além das formas explicitamente religiosas de saber tocar em todas as nossas relações, em todos os domínios das nossas vidas, sobretudo na educação e formação espiritual dos jovens.

Em suma, a apreciação do silêncio é o companheiro necessário da sensibilidade musical e religiosa, porque a música, tal como a liturgia, é uma gramática de quietude e silêncio. Ao longo de cerca de 20 anos como professor em instituições da Companhia de Jesus, as experiências mais memoráveis que tive com os estudantes envolvem a atenta sintonia do silêncio e da fala, a contemplação e a ação, a escuta ativa e a expressão criativa – a arte da aprendizagem comunitária e do discernimento. Formar “um novo tipo de humanidade que seja musical” parece-me ser uma síntese do que os educadores inacianos fazem quando dão o seu melhor, à imagem da famosa afirmação de Karl Rahner S.J. quando afirmou que o cristão de amanhã “ou será um místico – alguém que experimentou algo – ou então não será um cristão”.

No meio do barulho“, diz o Padre Nicolás, “podemos criar um espaço de silêncio“. Ao fazê-lo, especialmente nas nossas salas de aula, em todas as disciplinas, oferecemos um presente para toda a vida, uma prática espiritual centrada aos nossos alunos.

3. Terceiro Movimento: Um companheirismo de iguais

Há um momento notável na conclusão do seu discurso na Cidade do México em que o Padre Nicolás pede à sua audiência que se imagine “não como presidentes ou CEOs de grandes instituições, ou administradores ou académicos, mas como cofundadores de um novo grupo religioso, discernindo o apelo de Deus para si mesmos como parte de um corpo apostólico na Igreja. Neste mundo globalizado, com todas as suas luzes e sombras, será que a gestão e manutenção de todas estas universidades ainda é ainda a melhor forma de responder à missão da Igreja e às necessidades do mundo?”

A questão caracteriza o empenho da Companhia de Jesus de hoje e, em princípio, desde os seus inícios, pela compreensão da sua missão como uma “companhia de iguais”, ao lado de mulheres e homens, de leigos de todas as origens. O Padre Nicolás pedia tanto aos profissionais leigos como aos seus irmãos jesuítas presentes naquela sala que imaginassem o futuro com ele: católicos e protestantes, budistas, hindus, judeus, muçulmanos e, podemos presumir com segurança, não poucos agnósticos e ateus. E ele ligou o convite diretamente ao movimento do Espírito Santo no nosso tempo.

Que tipo de universidades, com que ênfase e com que direção, correríamos, se estivéssemos a refundar a Companhia de Jesus no mundo atual?

Que tipo de universidades, com que ênfase e com que direção, correríamos, se estivéssemos a refundar a Companhia de Jesus no mundo atual? [Porque] penso que cada geração tem de recriar a fé, tem de recriar a viagem, tem de recriar as instituições. Isto não é apenas um bom desejo. Se perdermos a capacidade de recriar, perdemos o espírito.

Que a missão dos Jesuítas não pode ser imaginada à parte da colaboração não é em parte alguma mais poderosa do que no discurso principal do Padre Nicolás em 2009 na Universidade Loyola Marymount, em Los Angeles, “Companheiros em Missão”: Pluralismo na Ação”. Aqui o Padre Nicolás nota com aprovação a emergência na Companhia, espelhando os desenvolvimentos da Igreja após o Concílio Vaticano II, de “uma visão não-Eurocêntrica” da missão na Ásia e África, América do Norte e do Sul e Europa, “onde os Jesuítas se encontram como colegas de trabalho no trabalho de outras pessoas. Correlativamente, eles comprometem-se com budistas, judeus, hindus, muçulmanos ou mesmo colegas de trabalho agnósticos nas suas próprias obras“. Os jesuítas erram quando assumem, frequentemente de forma paternalista, que a missão é “nossa”, e apenas por necessidade devem ser recrutados não-jesuítas para ajudar nos apostolados jesuítas. Pelo contrário, uma verdadeira “reciprocidade de presença pessoal é central para a nossa identidade como jesuítas” e assim tem sido desde o início.

Como que para sublinhar o ponto mais claramente, o Padre Nicolás rompeu então com os seus comentários preparados para partilhar uma história de uma das escolas jesuítas no Japão, envolvendo um administrador budista que interveio para mediar um conflito com um professor universitário descontente, que também era budista mas que se opunha à missão religiosa dos Jesuítas na escola. O administrador foi capaz de envolver o membro do corpo docente de uma forma que resolvesse pacificamente a situação. O padre Nicolás concluiu a história com este comentário:

O que quero dizer é que por vezes um budista como o vice-diretor pode ter um melhor entendimento do que queremos dizer com uma boa educação cristã ou jesuíta do que alguns de nós. O que conta é toda a experiência. Não é apenas o que fazemos na capela, que é muito significativo e mantém os nossos corações vivos. É também o que fazemos nas salas de aula, nos laboratórios de investigação, nas salas de residência, e assim por diante. É toda a operação que trabalha pela profundidade, pela criatividade na vida das pessoas de hoje, por uma nova humanidade no nosso mundo e no futuro. Este homem – este Budista – conseguiu-o. Precisamos de mais companheiros em missão como ele.

Por outras palavras, há ainda muito trabalho a ser feito no domínio da colaboração.

Mais uma vez, note-se a ênfase na luta pela formação de “uma nova humanidade” em benefício de um mundo sofredor. A linguagem é idealista e aspiracional, sem dúvida, e o Padre Nicolás admite que “a conversa sobre esta questão ainda não se tornou profunda e penetrante”, não sendo ainda um verdadeiro diálogo “entre colegas de trabalho e companheiros iguais“. Por outras palavras, há ainda muito trabalho a ser feito no domínio da colaboração. Ele esforça-se por reconhecer, por exemplo, que enquanto a Congregação Geral 34 comprometeu formalmente a Companhia de Jesus numa “solidariedade para com as mulheres como realidade integrante da nossa missão“, continua a ser o caso em algumas obras dos Jesuítas este compromisso “tem permanecido mais como um ente de razão do que uma realidade”.

Isto leva-nos ao que me parece o “movimento final” no legado do Padre Nicolás como Superior Geral da Companhia de Jesus. Se hoje todos somos atingidos conjuntamente pelas forças da globalização, como ele enfatizou na Cidade do México, então mais do que nunca temos de encontrar formas de “conjugar as nossas diferenças num propósito vital comum“. A mera tolerância não é suficiente, insiste o Padre Nicolás, e fica certamente aquém daquilo que o modo inaciano de educar procura atingir. Conclui observando que em tudo Inácio de Loyola privilegiou “a tarefa humilde, realista mas exigente de genuína conversa espiritual”. Acima de tudo, foi “em autêntica conversa sobre missão comum” que Santo Inácio intuía um Deus “sempre ativo, presente e a ser profundamente encontrado”.

Foi isto que encontrei, como tantas vezes fui encontrado, no meu trabalho educativo com os Jesuítas. Deus vem até nós na dança da conversa, pessoa a pessoa, coração a coração, num espaço de mútuo acolhimento e desafio mútuo onde os nossos diversos dons encontram espaço que os permite florescer. Se perdermos esta dimensão do nosso trabalho como companheiros inacianos em missão, perdemos o coração da nossa maneira de proceder, da nossa criatividade, do nosso espírito. Demos graças pela vida e testemunho do Padre Adolfo Nicolás e pelos sinais que ele levantou no caminho da nossa missão comum.

 

Este texto foi originalmente publicado na America Magazine. A tradução é do P. Miguel Pedro Melo, sj

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.