Miguel, arcanjo triste

Esta é a carta de Joana Garcia Fonseca, psicóloga, a Miguel, uma criança de 11 anos maltratada e abusada pela família: 'Hoje é dia 22 de dezembro… o menino Jesus está quase a nascer. Imagino-te perguntando-LHE sobre os teus direitos.

Esta é a carta de Joana Garcia Fonseca, psicóloga, a Miguel, uma criança de 11 anos maltratada e abusada pela família: 'Hoje é dia 22 de dezembro… o menino Jesus está quase a nascer. Imagino-te perguntando-LHE sobre os teus direitos.

Miguel*, arcanjo triste,

A dois dias do Natal, Joana Garcia Fonseca, que acompanha crianças em risco, fala-nos de Miguel. Um menino de 11 anos, maltratado e abusado, que chegou à Comissão de Proteção a poucos dias do Natal

Escrevo-te esta carta imaginando-te no cume de uma montanha. Estou aqui em baixo, a olhar para ti, tentando gritar ao mundo o quanto és especial. O mundo todo devia venerar-te, adorar a criança corajosa que és. E, ao mesmo tempo, envergonhar-se pela falta de cuidado que tem tido com os teus direitos, pela falta de humanidade para contigo.

Há tanto tempo nestas lutas e tanto espanto com a tua história, tanto espanto com o teu olhar, quando te conheci. Os teus olhos nos meus (espero que um pouco dos meus nos teus também…), o teu corpo rígido e distante… O teu pensamento (acho que parou, para te protegeres) … O teu tormento a sair pelos poros todos (só não vê quem é cego).

Chegaste a nós, Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, acompanhado de uma progenitora e do seu pai (não consigo dizer que é a tua mãe e o teu avô). Miguel, tu só tens 11 anos, é quase Natal. Hoje é dia 22 de dezembro… o menino Jesus está quase a nascer. Imagino-te perguntando-LHE sobre os teus direitos (não sei se ainda consegues perguntar).

Vejo-te no teu esforço para te manteres de pé. Não sei se algum dia pudeste ser embalado. Se te lembras de algum dia sentir o calor do peito da tua mãe. Se algum dia te olharam com ternura. Se algum dia tiveste direito a cheirar a pele da tua mãe, a sentir um beijo e um abraço de verdade.

Há tanto tempo nestas lutas e tanto espanto com a tua história. A tua mãe também foi acompanhada na Comissão. Abrimos o livro da sua história antes de a conhecer e encontrámos o mesmo desamparo, a mesma tristeza, o mesmo abuso.

Não sei se acreditas, mas há tanto tempo nestas lutas e tanto espanto com a tua história. A tua mãe também foi acompanhada na Comissão. Abrimos o livro da sua história antes de a conhecer e encontrámos o mesmo desamparo, a mesma tristeza, o mesmo abuso. O teu avô abusava sexualmente dela, desde os seus quatro anos de idade, mas ela sempre o amou, nunca se zangou com ele. É uma loucura das grandes, não é? É uma loucura dantesca vir com ele à Comissão, não é?

Miguel, foi duro, foi hediondo o que fizeram contigo. Tratar-te como um objeto sexual, alugar-te um quarto onde te deixavam a dormir sozinho todas as noites. Mais de um ano nisto, sem que ninguém te encontrasse ou desse pela tua falta… Quis saber se sonhavas, e tu confidenciaste-me que sonhavas sonhos assustados: “Às vezes sonho que vou cair da janela”, “Outras vezes, sonho que há ladrões, que estão aos tiros”.  Tinhas medo, tanto medo, Miguel.

Foi o Tribunal que te entregou ao teu pai e o teu pai entregou-te a um carrasco. Disse-nos que era um amigo de confiança, que ficaria a cuidar de ti, enquanto ele ia trabalhar. Como é possível, Miguel? Onde andava a tua mãe? Onde andávamos nós? O que é ser mãe? Virás algum dia a ser pai, Miguel?

Naquela sala, que me pareceu desconfortável para ti, tentei explicar-te o que iria acontecer, que irias para uma residência de acolhimento, que irias finalmente ter direito a viver protegido dos ladrões, dos tiros e da vontade de te atirares da janela. Acenaste e verbalizaste apenas: “Pode ser”.

Olha, Miguel, não foi fácil encontrar-te. Na verdade, foram precisas muitas pessoas para te encontrar. E seriam todas aquelas que fossem precisas. Por ti, Miguel. Tudo o que fizermos, ficará sempre à margem do que seria justo…

Mas, sabes, sinto mesmo que não conseguimos dar-te o aconchego que merecias e precisavas. Volto à montanha. Estou cá em baixo. E tu lá em cima. És muito mais do que o sistema. Estás mais próximo do menino Jesus do que qualquer um de nós, acredita. Haja esperança, Miguel. Por um mundo melhor por ti e para ti.

 

* Carta a Miguel, criança acompanhada em contexto de Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ)

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.