Ir ao cinema – Cold War

A Brotéria sugere esta semana uma ida ao cinema. Carlos Capucho analisa a obra de Pawel Pawlikowsk cuja a ação acontece entre 1949 e os meados da de´cada de 60, altura em que se vive uma especial tensão entre o ocidente e o comunismo.

A Brotéria sugere esta semana uma ida ao cinema. Carlos Capucho analisa a obra de Pawel Pawlikowsk cuja a ação acontece entre 1949 e os meados da de´cada de 60, altura em que se vive uma especial tensão entre o ocidente e o comunismo.

Breve Sinopse: A acção desenvolve-se entre 1949 e meados da década de 1960, situando-se predominantemente na Polónia e em França, com passagens pela Alemanha de Leste e a Jugoslávia. Wictor é compositor e musicólogo e, juntamente com Irena (também ela musicóloga), percorre a Polónia recolhendo matéria musical tradicional. São então solicitados pelas autoridades comunistas para dirigirem uma escola onde serão selecionados jovens cantores e dançarinos, com vista à criação de um grupo que venha a representar o país no domínio do folclore polaco, a nível local e internacional. Perante os êxitos conseguidos, os funcionários do Partido pretendem desviar o Grupo para acções de propaganda, o que desagrada a Irene e é aceite por Wictor. Logo na fase de selecção impõe-se a personagem forte de Zula, que não só chama a atenção de Wictor enquanto técnico, mas o enfeitiça sentimentalmente. Sob fortes constrangimentos políticos impostos pelo Partido Comunista e o tumulto entre duas personalidades tão diversas, a ligação de Wictor e Zula jamais conseguirá estabilizar. Até de um ponto de vista geográfico: a partir da Alemanha de Leste Wictor foge para França, enquanto Zula permanece vários anos na Polónia. Depois de uma relação desencontrada a todos os níveis (que passa por uma fase em que vivem em Paris), acontecimentos dramáticos acabarão por determinar que ambos se reencontrem (definitivamente?) na Polónia natal.

Nota Crítica: Um drama político, social e sentimental construído sob o signo da música. Poderemos, assim, ensaiar o resumo de um filme complexo como Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski?  Sem que tal deixe de ser verdadeiro, esta nova obra do realizador polaco não suporta etiquetas, tal a pluralidade de temas  e de elaboração fílmica.

Pawlikowski não é um estranho em Portugal. Já em 2000 e 2004 teve estreados no nosso país dois filmes de produção inglesa, na fase em que viveu no Reino Unido. Mas o que torna o seu nome popular no nosso país (e em muitos outros) é a produção que marca o seu regresso à Polónia, para realizar aquele que em 2013 recebe o triunfo do Óscar para o melhor filme estrangeiro: Ida. A história de uma jovem noviça, nos anos de 1960, que desconheceu até à juventude a sua ascendência judaica, numa Polónia ocupada pela Alemanha nazi, e é agora abruptamente confrontada com as suas raízes e a procura da razão de ser da sua vocação religiosa cristã. Ida, admirável filme, a preto e branco (tal como Guerra Fria) que, então como agora, situa pessoas marcadas por um contexto temporal político, religioso e social que condiciona dramaticamente as suas existências. Então (Ida), no eco dos acontecimentos que marcaram tragicamente a Polónia na Segunda Guerra Mundial a repercutir-se vinte anos depois nas pessoas e na sociedade. Agora (Guerra Fria), no imediato pós-guerra, na Polónia e em países satélites da Rússia Soviética e numa França que, vinte anos depois, se aproxima do terramoto social e político de Maio de 68.

Que guerra fria é essa para que aponta o título? O ambiente político de confronto entre os dois blocos: o do regime comunista e o do Ocidente livre, marcado por incoerências de toda a ordem. É a guerra fria entre as pessoas que vivem esse dilaceramento ideológico e social, aqui concentradas em Wictor e Zula. Dilaceramento: não é por acaso que o início do filme é marcado pela ruína de uma igreja a céu aberto, provavelmente destruída durante a Guerra, e que, na coda, virá a ser o espaço sofrido que albergará a união (definitiva, precária?) dos dois protagonistas, isolados, fugidos de todas as peias sociais e políticas que durante décadas os tolheram. A fuga para uma utopia? Sabiamente Pawlikowski encerrará o filme sem nada mais nos dizer. São  desafiadores filmes assim, que recusam o consolo de um fecho perfeito, mas, depois de as luzes se acenderem, nos deixam às voltas com conjecturas e perguntas, ao som pacificador, no caso, das Variações Goldberg, de Bach. E aqui chegamos ao ponto de como a música é tão importante neste filme. Porque, ao contrário de tantas bandas sonoras que nos condicionam e tolhem, aqui, a música, torna-se frequentemente protagonista, ajuda-nos a encontrar chaves de interpretação para o drama colectivo e pessoal. A música a assumir protagonismo e acção. Sinto, aqui, algo que já encontrara em Crónica de Ana Madalena Bach (Jean-Marie Straub/Danièle Huillet, 1968) ou em Tous les Matins du Monde (Alain Corneau, 1991), para não citar outros: duas obras notáveis em que, a sublime música (de Bach e de Monsieur de Sainte Colombe), nos diz quem são e como são as pessoas que a fazem e nos enquadram os dramas e a luz que as envolve. Em Guerra Fria, não existe luz para Wictor e Zula. E para quem se pergunte sobre o porquê da opção do rigoroso e austero preto e branco da película (tal como já fora em Ida) é o próprio filme a dar a resposta: não podia ser colorido! Toda a sua força e dramaticidade se diluiria. Por outro lado, um outro detalhe técnico, remete-nos para a antiguidade da problemática humana e política que Guerra Fria nos propõe, ao dar-nos a ver esse já referido dilaceramento que regimes políticos (no caso o comunismo) e contextos sociais provocam nas pessoas. Estou a referir-me ao ratio que determina a dimensão do ecrã (1.37: 1) e que resulta numa moldura de, quase, um quadrado. O que, se por um lado, evoca um cinema antigo, por outro lado, na prática, comprime a matéria enquadrada (actores e adereços) num pequeno espaço, com as consequências estéticas e psicológicas somadas à composição, dentro do quadro, quer nos planos de conjunto, quer nos planos próximos. Se, porventura, o espectador não iniciado não detecta, explicitamente, esses elementos, eles não deixam menos de influenciá-lo visualmente e, em última análise, de determinarem uma leitura. Esse é, justamente, um dos ‘mistérios’ das artes visuais a que, também, o cinema não escapa. Tal como a dinâmica dos separadores a negro, por corte, determinando o final de sequências ou  mudança no avanço cronológico do tempo ou localização geográfica, são outros tantos marcos a sinalizarem as roturas afectivas, políticas, sociais e artísticas que atingem, como balas, o par central.

Neste filme sensível e inteligente uma palavra ainda para a excelência dos actores centrais Joanna Kulik e Tomasz Kot. Kulik é capaz de assumir, de forma credível, superior, as metamorfoses que o evoluir da sua personagem complexa exige no fluir dos anos do tempo diegético da narrativa.

 

Informações

COLD WAR-GUERRA FRIA

(T.O.) Zimna Vojna/Cold War

Realização: Pawel Pawlikowski

Estreia em Portugal: 20/09/2018

1H. 28 minutos – M/14 anos

Drama político/drama de costumes/musical

Argumento: P. Pawlikowski

Música: Folclore polaco, jazz, rock

Fotografia a preto e branco: Lukasz Zal

Actores Principais: Joanna Kulig (Zula), Tomasz Kot (Wictor), Agata Kulesza(Irena), Borys Szyc, e Cédric Kahn

Em Exibição

Lisboa: UCI-Corte Inglês; Cinema Ideal

Porto: Trindade

Madeira: Nos Cinemas

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


Brotéria Logo

Sugestão Cultural Brotéria

Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

Conheça melhor a Brotéria