Hans Küng: aprender a amar a Igreja através dos rebeldes

Num tempo tantas vezes fratricida, Küng continua a apelar a uma “reforma católica, considerada como renovação, não mera reforma interna dos corações, nem mera reforma externa das situações inconvenientes, mas reforma positiva e criadora".

Num tempo tantas vezes fratricida, Küng continua a apelar a uma “reforma católica, considerada como renovação, não mera reforma interna dos corações, nem mera reforma externa das situações inconvenientes, mas reforma positiva e criadora".

A morte de Hans Küng reacende um ciclo recente de desaparecimento de figuras que marcaram, de forma indelével, a história do pensamento teológico do séc. XX, entre as quais podemos nomear, Jean-Louis Chrétien (28 de Junho de 2019), Jonhann Baptist Metz (2 de Dezembro de 2019) ou Joseph Moingt (28 de Julho de 2020). No entanto, e talvez devido à declaração de 1979 da Congregação para a Doutrina da Fé, na qual se afirmava que H. Küng “já não pode ser considerado teólogo católico nem pode, como tal, exercer o cargo de ensinar”, este começou a ser olhando, de forma injusta, de modo excessivamente panfletário, fazendo quase obscurecer o seu contributo de charneira no plano teológico do IIº Concílio do Vaticano. Prova disso, é talvez a resposta ao seguinte desafio: se acerca dos outros três supracitados teólogos podemos indicar uma ou duas ideias chaves de fundo, quantos horizontes desenvolvidos por Küng poderemos nós apontar de forma rápida e imediata?

Contudo, e apesar da perceção de que estamos diante de um “bom rebelde”, do grande “enfant terrible” da teologia do séc. XX, julgo não ser despiciendo vermos nele alguém que nos pode ajudar a amar genuinamente a Igreja.

Ensaiar uma crítica
Em 1962, Hans Küng lançava um conjunto de breves cartas, longe do seus volumosos tratados de teologia, intitulado “Para que o Mundo Acredite”. O seu objetivo era responder de modo simples às inquietações de quem tem dificuldades e, inclusivamente, não gosta de falar da sua adesão à fé ou à Igreja, por medo, receio ou vergonha. Neste sentido, e como a maioria certamente já experimentou, muitas das conversas em torno destes temas esbarram, à partida, na inquisição, nas cruzadas, no pretensioso luxo do Vaticano … o que levou Küng a atrever-se a formular esta pergunta: “Deve o católico defender tudo?”.

Porém, a esta questão o teólogo suíço responderá lapidarmente: “A Igreja não espera de ti (…) que pintes a situação de cor-de-rosa. Não espera que mintas, que faças discursos lisonjeiros ou cheios de subterfúgios. Só espera de ti a verdade, não mais, nem menos”. De facto, num contexto onde ainda clamam os recentes casos de abusos a menores, a perspetiva segundo a qual nos cabe não só explicar, mas denunciar erros e pecados, inclusive no interior da Igreja, e não defender tudo a todo o custo, e que isto dimana, precisamente, da nossa presença à Igreja é algo de profundamente encorajador. A postura será, assim, semelhante à que uma personagem da peça Party de Agustina de Bessa-Luís proclama no início da mesma: “Não tenho que estar do seu lado, mas estar ao seu lado”.

Todavia, nessa mesma carta, H. Küng avança em mais dois horizontes importantes. Por um lado, ao assumir que “há fadiga e desfalecimento, há mediocridade e coisas torcidas, há deformações, empobrecimentos, inércia e fechamentos”, em todos os membros do corpo eclesial, concretiza uma inversão de um espírito clericalista perigoso, tornando todos realmente responsáveis pela caminhada de todos, longe de um clima de impunidade, autoridade incontestada e sem limites, ou ingenuidade alimentada. Por outro, lança um convite relevante, para que, numa postura de otimismo em relação à realidade eclesial, se tente com esta postura “fazer notar, pouco a pouco, que estas sombras não são o único na nossa Igreja, e que nem sequer são o único e decisivo, precisamente porque o decisivo não é nunca a sombra, mas aquilo que projeta a sombra”.

Aprender a mudar 
Não obstante, não é raro pensarmos que esta “é a Igreja a quem, na maior parte dos casos, (…) se fazem críticas, mas que, no fundo, é incorrigível. A velha Igreja, em tudo continua como antes. (…) Antiga, grande e poderosa, mas que, em muitos sentidos, esqueceu o Evangelho do Senhor”.

Mas, para Hans Küng “criticar não é suficiente (…) há que por as mãos à obra”. É certo, que caiu na linguagem comum, cheia de enganos e refúgios, a frase de John F. Kennedy no seu discurso de posse, no qual ele apelava os americanos, dizendo: “não perguntes o que a tua pátria pode fazer por ti. Pergunta o que tu podes fazer por ela”, mas isso deve servir para nós como incentivo renovado. Porque, num tempo em que gritamos por reformas, mudanças e alterações de paradigmas, quanto tempo teremos nós investido em ensaiar possibilidades novas segundo o Evangelho? Quantas vezes apelamos à renovação da estrutura, mas não permitimos que o nosso pequeno jardim fosse intervencionado? Por mais estranho que possa parecer, é de Hans Küng a expressão: “criticar não é suficiente (…) há que por as mãos à obra”, “suprimindo o que nosso Senhor não quer que haja na nossa Igreja. Fazendo o que nosso Senhor reclama à nossa Igreja”.

Praticar a reforma 
Nesta linha, é surpreendente que o “bom rebelde” da teologia do séc. XX explique, neste mesmo livro, o que entende, de forma sumária, por reforma da Igreja. No seu entender, esta “não é uma revolução”, “uma inversão violenta”; nem, tão pouco, “uma restauração”, o “restabelecer de antigas formas” ou o “reavivar um sistema disciplinar”, mas algo entre aqueles que olham para a novidade de forma “fanática”, e aqueles outros que querem “erguer novamente a observância rigorosa de leis e regras”, só possível a quem, por um lado, sabe que “nem sempre as coisas foram assim”, e, por outro, reconhece e assume a postura de quem quer “avançar até uma verdade cada vez mais profunda”.

Em suma, num tempo tantas vezes fratricida, Hans Küng continua a apelar a uma “reforma católica, considerada como renovação, não mera reforma interna dos corações, nem sequer mera reforma externa das situações inconvenientes, mas reforma positiva e criadora”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.