Hopkins: A incessante busca de um idioma poético singular

O jesuíta e poeta inglês Gerard Hopkins é pela primeira vez apresentado numa edição portuguesa da responsabilidade das Paulinas. O livro "Poesias e prosas escolhidas" é apresentado hoje em Lisboa. Publicamos em exclusivo o seu prefácio.

O jesuíta e poeta inglês Gerard Hopkins é pela primeira vez apresentado numa edição portuguesa da responsabilidade das Paulinas. O livro "Poesias e prosas escolhidas" é apresentado hoje em Lisboa. Publicamos em exclusivo o seu prefácio.

PREFÁCIO

Poeta, sacerdote da Companhia de Jesus, Gerard Manley Hopkins nasce em Stratford, em Inglaterra, a 28 de julho de 1844, vindo a falecer prematuramente em Dublin, na Irlanda, a 8 de junho de 1889, vítima de febre tifóide. A sua existência decorre, portanto, na sua maior parte, durante a época vitoriana, assim chamada devido ao longo reinado da rainha Vitória.

Oriundo de uma família da classe média, na qual pontificavam os interesses literários e artísticos, Gerard frequentou o conceituado Balliol College, em Oxford, onde conheceu o futuro poeta laureado Robert Bridges. Entre eles nasceu então uma amizade que se prolongaria até à morte de Hopkins e que esteve na base de uma intensa troca epistolar entre ambos.

Jovem adulto, afasta-se da Igreja anglicana, à qual pertenciam seus pais, sendo recebido no seio da Igreja católica, a 21 de outubro de 1866, pela mão de John Henry Newman.

A 16 de setembro de 1868, inicia um retiro de um mês na Companhia de Jesus, onde, pela primeira vez, tomou contacto com os Exercícios espirituais que viriam a marcar profundamente quer a sua poesia quer a forma discreta com que se concebeu enquanto poeta.

A 16 de setembro de 1868, inicia um retiro de um mês na Companhia de Jesus, onde, pela primeira vez, tomou contacto com os Exercícios Espirituais que viriam a marcar profundamente quer a sua poesia quer a forma discreta com que se concebeu enquanto poeta.

Mário Avelar

Na introdução a Gerard Manley Hopkins: The Major Works, a edição da Oxford University Press à qual recorri para a tradução que aqui se apresenta, Catherine Phillips[1] considera que os Exercícios espirituais tê-lo-ão levado a intensificar um diálogo interior que se projeta nos poemas, e a assumir uma atitude de profunda humildade face à sua própria produção poética.

Essa atitude será evidente num passo do Diário, escrito anos mais tarde, a 8 de setembro de 1883, onde afirma deixar nas mãos de Deus a eventual divulgação dos seus poemas: «…hoje pedi com seriedade a Nosso Senhor que zelasse pelas minhas composições, não para impedir que elas se percam ou que deem em nada, pois na verdade desejo que assim aconteça, mas para que não me façam mal por inimizade ou imprudência alheia ou minha; que Ele as tome como suas e as use como muito bem lhe aprouver.»

Após os votos, a 8 de setembro de 1870, segue-se o percurso natural que o levará a assumir várias funções – sacerdotais, letivas, de investigação teológica – e a viver em diferentes locais, não só em Inglaterra, mas também no País de Gales e na Irlanda, onde, como acima referi, viria a falecer.

A forma rigorosa, radical mesmo, como assumiu a sua identidade espiritual esteve na base de algumas intervenções dos superiores, como a que ocorreu em 1873, quando foi proibido de jejuar devido ao frágil estado de saúde. Com efeito, a sua saúde foi sempre débil, assim como recorrentes e prolongados foram os episódios depressivos.

Por seu turno, a poesia é algo que, ainda que de uma forma irregular, o acompanha ao longo da vida. Embora, por opção própria, dela se tenha afastado nos primeiros tempos vividos na Companhia de Jesus, a ela regressa de uma forma particularmente poderosa no inverno de 1875. Deve-se este regresso ao naufrágio do Deutschland, o navio onde viajavam cinco freiras franciscanas, que a Alemanha havia forçado ao exílio. As notícias deste naufrágio, e, em particular, o facto de ele se ter prolongado por mais de um dia, durante o qual o socorro tardou a chegar, devido às más condições atmosféricas, impressionaram profundamente o poeta. Quando o confidenciou ao seu superior, este sugeriu-lhe que concebesse um poema sobre o evento.

Por seu turno, a poesia é algo que, ainda que de uma forma irregular, o acompanha ao longo da vida. Embora, por opção própria, dela se tenha afastado nos primeiros tempos vividos na Companhia de Jesus, a ela regressa de uma forma particularmente poderosa no inverno de 1875.

Mário Avelar

Hopkins acolheu esta sugestão, tendo dedicado o ano seguinte à sua escrita. No plano formal o poema revelaria o impacto que nele teve a estadia em Gales, com destaque para a musicalidade da língua com que então tomara contacto e que estudara.

À semelhança do que antes sucedera com a língua grega, impressioná-lo-iam os ritmos interiores e as aliterações que tentou transpor para o discurso poético, e que esteve na base de um processo prosódico por ele cultivado e desenvolvido, o sprung rhythm (rimo estalado ou fendido), um ritmo descontinuado em termos de acentuação que, na tentativa de reproduzir as flutuações melódicas da linguagem oral, contrariava as melodias convencionais da poesia inglesa.

O naufrágio do Deutschland, o poema que resultaria desta sua empresa, não seria, contudo, bem acolhido, tendo, aliás, sido recusado pelo periódico da Companhia de Jesus, a revista Month (Mês), assim designada devido ao facto de ser uma publicação mensal.

Para nós, leitores seus no século xxi, a estranheza que o envolve, decorre, em especial, das sistemáticas alusões nele existentes aos textos bíblicos, os quais surgem a par de outras a episódios do quotidiano que hoje não conseguimos, de imediato, identificar; entre estes, por exemplo, menciono nas «Notas» a referência aos carris na décima primeira estrofe, através do que indiretamente evoca o elevado número de acidentes ferroviários que na altura eram recorrentes.

Ora, para os ouvidos do leitor vitoriano, contemporâneo de Hopkins, a estranheza decorreria, em contrapartida, da fuga às convenções poéticas predominantes, e da tendência para conceber palavras insólitas cujo significado basicamente radicava no seu imaginário pessoal, um imaginário ao qual não seria estranha a prática dos exercícios espirituais.

Apenas em 1918 a sua poesia viria a lume, desde logo impressionando, pelo estilo alusivo e elíptico, e pelo seu poder de sugestão imagética, aqueles que, em pleno modernismo, tentavam conceber novos rumos para a poesia de expressão inglesa.

Ao leitor destas versões dos poemas que aqui se oferecem, a esse «amigo que jamais verei», como ele próprio nos designou no soneto que figura em segundo lugar nesta coletânea, faço uma sugestão: não deixe que uma eventual perplexidade inicial o constrinja; permita que as palavras, as atmosferas neles descritas ou insinuadas, o enleiem; assuma-as como instantes de meditação, exercícios que participam do seu percurso espiritual; e depois de cada leitura, regresse ao poema… sempre que algo em si o exija.

De modo a poder ampliar um pouco mais o contexto em que estes poemas emergem, optei por incluir fragmentos de textos em prosa: de diários, de cartas, de meditações devedoras do exercício enquanto sacerdote da Companhia de Jesus; todos eles podem contribuir para uma aproximação prismática à complexa personalidade estética de Hopkins.

Ao leitor destas versões dos poemas que aqui se oferecem, a esse «amigo que jamais verei», como ele próprio nos designou no soneto que figura em segundo lugar nesta coletânea, faço uma sugestão: não deixe que uma eventual perplexidade inicial o constrinja.

Mário Avelar

Nos Diários, mais do que registos de instantes factuais, podemos reconhecer a expressão de uma sensibilidade atenta às singularidades que se insinuam no(s) espaço(s) em que o autor se move, e o modo como este a eles reage, nomeadamente quando o onírico com eles inviamente dialoga. Já nas Cartas, género que era um solo privilegiado de interação social durante a época vitoriana, será visível quão complexa foi a decisão de se converter ao catolicismo e as tensões que esse gesto implicou, tanto no plano familiar como no da sua relação com as pessoas que estavam mais próximas de si; exemplo desta última serão as cartas ao amigo Robert Bridges. Por fim, os excertos de um sermão e das suas Notas sobre Exercícios espirituais, em torno do tópico «o princípio ou fundação», permitem-nos ter uma perceção mais nítida da radicalidade da qual participa a sua fé.

Com as «Notas», propositadamente sucintas, foi meu objetivo providenciar um nível de informação mínimo para um melhor entendimento de alguns aspetos evocados nos textos.

Não posso terminar sem um agradecimento ao padre Tolentino por me ter lançado este desafio.

 

[1] Sou particularmente devedor do trabalho meticuloso de Catherine Phillips na elaboração das notas aos escritos de Hopkins.

Nota biográfica de Gerard Manley Hopkins

Editora: Paulinas, 2018

Custo: 10,50 €

Tradução e prefácio: Mário Avelar

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Mário Avelar - Tradutor e autor do prefácio

Três perguntas ao tradutor da obra – Mário Avelar

 

Qual a importância de Gerard Hopkins e da tradução deste livro para português?
Um influente crítico inglês, F. R. Leavis, disse um dia que “o tempo provará talvez ser ele o único poeta influente da época vitoriana.” Esta afirmação não pode, de modo algum, ser considerada displicente, visto indiciar duas dimensões fulcrais na poesia de Hopkins, uma ancoragem no tempo que nele, ainda que subliminarmente, mergulha na sua especificidade, e o eco que teve em gerações ulteriores, em particular, nos modernistas. Esta tradução para português de alguns poemas seus, e de textos em prosa que, de alguma forma, os iluminam, é um primeiro esforço sistemático para o dar conhecer ao leitor de língua portuguesa. Espero que ela tenha o mérito de suscitar mais traduções que optem por outras estratégias de acolhimento pela língua portuguesa.

O que mais caracteriza a sua escrita? 
Aquilo que, tanto no seu tempo como no nosso, pode ser considerado um efeito de estranheza. Para um leitor de língua inglesa do século XIX, habituado a uma poesia radicalmente ligada a regras prosódicas bem definidas, com acentuações regulares em ritmos decorrentes do jogo entre sílabas tónicas e átonas, os ritmos irregulares de Hopkins, que ele pretendia serem mais próximos da linguagem quotidiana, era causador de uma evidente perplexidade. Acrescia a esta dimensão algo formal, um universo imagético muito pessoal. Um leitor contemporâneo, já formado nesse experimentalismo formal, será confrontado com uma certa opacidade referencial; refiro-me, obviamente, ao solo cultural cristão e, católico, em particular.

Esta tradução para português de alguns poemas seus, e de textos em prosa que, de alguma forma, os iluminam, é um primeiro esforço sistemático para o dar conhecer ao leitor de língua portuguesa. Espero que ela tenha o mérito de suscitar mais traduções que optem por outras estratégias de acolhimento pela língua portuguesa.

Mário Avelar

Como é que a sua pertença à Companhia de Jesus e a a sua dimensão religiosa influiu na sua escrita? 
A minha intenção que, aliás já referi, de incluir textos em prosa, tem, precisamente, como objectivo proporcionar ao leitor alguns instrumentos que lhe permitam identificar uma certa atmosfera que decorre da sua vivência enquanto sacerdote jesuíta; por exemplo, o fragmento ligado aos Exercícios Espirituais. Esta sua pergunta pode levantar uma outra questão, a de saber se o livro não deveria começar exactamente com os textos em prosa, para que, em seguida, o leitor mergulhasse nos textos poéticos na posse de outros instrumentos de compreensão? Ora, creio que não, pois, deste modo, o leitor tomará um primeiro contacto com os poemas, poderá reconhecer neles atmosferas, questões que participam da sua própria memória espiritual e estética, e, depois de ler os textos em prosa, regressar aos poemas. Não é por acaso que esta seleção começa com um poema essencialmente ancorado no real, uma écfrase – a descrição de um signo visual – “Para um retrato de Santa Doroteia”. Através dele cumpre-se aquilo que Jorge de Sena considerava ser uma característica da poesia inglesa, “a capacidade de especular emocionalmente em verso.” E espiritualmente também, acrescentaria eu.

Entrevista de P. José Maria Brito, sj

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.