Dias de luto

São muitos e complexos os assuntos em cima da mesa da presidência portuguesa da UE. Não é o mais fácil dos tempos mas a experiência das presidências anteriores e a competência dos diplomatas permitirão levar o barco ao melhor porto possível

São muitos e complexos os assuntos em cima da mesa da presidência portuguesa da UE. Não é o mais fácil dos tempos mas a experiência das presidências anteriores e a competência dos diplomatas permitirão levar o barco ao melhor porto possível

A Europa vive provavelmente um dos seus momentos mais negros desde há muitas décadas. Teremos talvez de recuar à segunda guerra mundial e ao seu cortejo de horrores, para encontrar um tempo mais difícil e dramático.

No coração do continente ergue-se há quase 70 anos uma organização internacional sui-generis, a União Europeia (UE), que promove a integração progressiva de povos, direito, economia, pessoas e valores.

A UE conheceu crises de muitas origens e consequências ao longo da sua existência: a chamada crise da cadeira vazia, em 1965, que bloqueou o processo europeu, o choque petrolífero dos anos 70, o eurocepticismo de Margaret Thatcher (“give my money back”), prenúncio avant la lettre do Brexit, nos 80, o desemprego ao virar do século e, depois, vinte anos de enormes dificuldades, ameaças e desafios.

O século começou mal. Logo em 2001, a Europa e o Mundo acordaram para a realidade do terrorismo com a queda das Torres Gémeas no dia 11 de setembro de 2001, a prenunciar uma ameaça que viria a assolar o continente europeu várias vezes nos anos seguintes. Só em 2020, Viena, 2 de novembro; Nice, ataque à faca; a decapitação de Samuel Paty, em Paris, ainda dilacerada pela memória do Bataclan; nove pessoas mortas em Hanau, na Alemanha, em fevereiro.

O terrorismo, infelizmente, está bem vivo, ainda que se não recomende.

E mal a União começava a sair desse buraco sem fundo, um coronavírus desconhecido fez recuar a economia europeia – ainda não se sabe bem quando e a que ritmo se fará a recuperação; primeiro, é preciso vencer a pandemia.

A crise económica eclodiu em 2008 e afetou a Europa de forma assimétrica, ameaçando os países mais pobres e endividados de bancarrota, o que só a solidariedade europeia, sob a forma pouco simpática de apoio sob condição (a “troika”!), permitiu evitar. E mal a União começava a sair desse buraco sem fundo, um coronavírus desconhecido fez recuar a economia europeia – ainda não se sabe bem quando e a que ritmo se fará a recuperação; primeiro, é preciso vencer a pandemia.

Antes, houve outras ameaças. Na última década, raros foram os meses sem o anúncio da desagregação iminente da integração europeia. No auge da já referida crise económica, na invasão russa da Ucrânia, na chegada maciça de refugiados em 2015, no Brexit, na ameaça da rota do belt and road chinês, na administração norte-americana, anti-globalização e anti-UE.

Uma Comissão Europeia enfraquecida, ultrapassada no seu supranacionalismo (outra palavra para, neste contexto, europeísmo) pelo Conselho Europeu intergovernamental (outra palavra, esta mais cautelosa, para nacionalismo, ainda que moderado), punha em causa a ideia do interesse comum europeu em favor do braço de ferro dos interesses nacionais; a saída anunciada do Reino Unido ameaçava criar um efeito de contágio irresistível; a concorrência chinesa semeava a zizania, uns a clamar pela afirmação económica europeia e outros a aconselhar prudência; uma administração norte-americana soberanista e alérgica ao multilateralismo fazia num ápice de velhos aliados “foes” e renegava acordos firmados ou em negociação, como o (para já) malogrado TTIP; governos e partidos populistas, mesmo no seio da União, ameaçavam a coesão do grupo e os valores e princípios fundadores, o Estado de Direito e o respeito pelos direitos.

Os sinais eram claros e não eram bons.

O PARADOXO EUROPEU

A Europa resistiu. A UE, se fraquejou, soube perseverar. E os sinais, se se tornaram talvez menos claros fizeram-se também esperançosos. Sim, apesar da pandemia.

Uma nova Comissão Europeia, liderada pela primeira vez por uma mulher, Ursula von der Leyen, trouxe uma lufada de ar fresco e políticas viradas para o futuro:

A transição digital, visando fazer da Europa o continente do futuro, das novas tecnologias, dos supercomputadores e da inteligência artificial. A transição ambiental e o ambicioso objetivo da neutralidade climática em 2050, assente nas energias renováveis e na economia circular; uma Europa mais social, preocupada com a exclusão; uma presença europeia no Mundo descomplexada e afirmativa; e uma defesa sem concessões dos princípios e valores fundamentais, inscritos no código da União.

A Europa resistiu. A UE, se fraquejou, soube perseverar. E os sinais, se se tornaram talvez menos claros fizeram-se também esperançosos. Sim, apesar da pandemia.

A pandemia tornou-se, por força das coisas, a prioridade das prioridades. O Brexit ocupou boa parte do ano, em negociações levadas ao limite, resultando num acordo a que gosto de chamar contingente e incerto. A administração Trump tornou-se uma dor de cabeça, no seu antagonismo visceral contra a integração europeia. A vizinhança imediata cresceu em turbulência, a imigração económica descontrolou-se. O populismo ganhou raízes.

Ao mesmo tempo que enfrentava os fantasmas e problemas reais que a assolavam, a UE foi-se aprofundando. Nisso reside o paradoxo do título:

À pandemia retorquiram os líderes europeus com respostas inovadoras, com o Plano de Recuperação e Resiliência e o financiamento de €750 mil milhões obtidos no mercado obrigacionista (obrigações sociais, obrigações ambientais, etc).

Ao Brexit respondeu a união dos restantes 27 Estados-membros.

Uma administração norte-americana multilateralista, europeísta, se assim me posso exprimir, sucedeu à anterior e promete-se já uma refundação dos laços transatlânticos.

Os fluxos de refugiados e migratórios estão controlados, os conflitos nalgumas zonas vizinhas da Europa circunscritos.

Finalmente, a União aprovou, apesar da oposição de alguns países, regras claras de condicionalidade ligadas ao cumprimento dos princípios e valores europeus – contra o populismo e o crescimento do iliberalismo nalgumas democracias.

Finalmente, a União aprovou, apesar da oposição de alguns países, regras claras de condicionalidade ligadas ao cumprimento dos princípios e valores europeus – contra o populismo e o crescimento do iliberalismo nalgumas democracias.

Não são anos fáceis, muito pelo contrário, mas a Europa, ainda assim, progride.

E PORTUGAL?

O nosso país herda alguns dossiês complexos da presidência precedente – a alemã -, com destaque natural para a gestão da pandemia, sendo o problema dos refugiados e dos imigrantes económicos um dos mais importantes. E a primeira de todas as tarefas respeita à situação sanitária. Cabe a Portugal, em estreita ligação com as instituições europeias, em particular a Comissão, coordenar e estimular as medidas necessárias à luta contra a pandemia no plano europeu.

Nesse contexto também, outro dos objetivos estratégicos da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (o nome oficial da presidência) será a execução eficaz do plano de recuperação – a célebre “bazooka” – e, em particular, considerando a duração do mandato, a avaliação e coordenação dos indispensáveis planos nacionais.

E mais, na agenda:

A Europa social, visando a melhoria do modelo social europeu e da coesão social, com destaque para a Cimeira Social de maio para debater a dimensão social na retoma da economia, a transição digital e climática e o reforço do pilar europeu dos direitos sociais.

A Europa Verde, do pacto ecológico, da economia azul e das políticas energéticas e de transportes, bem como a Europa digital, com o objetivo ambicioso de alcançar a liderança na economia digital e de promover a democracia digital.

No que respeita à Europa global, o multilateralismo, a resposta a emergências humanitárias, as relações com África e a Cimeira de Maio com a Índia.

Não fica de fora, assinado que foi o Acordo com o Reino Unido, assegurar (e não está de todo assegurada) uma concretização “suave” dos seus termos, estando ainda em aberto a negociação das relações em matéria de serviços (sobretudo financeiros). E, claro, o reatar das relações transatlânticas com o grande parceiro norte-americano sob nova administração.

Finalmente, o problema das migrações, que não pôde ser resolvido durante o semestre alemão. Há propostas da Comissão e uma ferida que sangra sem cessar e compromete o relacionamento entre os Estados-membros e a solidariedade europeia; veremos como pode o nosso país contribuir para uma solução.

Em suma, são muitos e complexos os assuntos em cima da mesa da presidência portuguesa da União Europeia. Não é o mais fácil dos tempos, mas estou certo de que a experiência acumulada nas três presidências anteriores e a competência dos nossos diplomatas e representantes na Europa, permitirão levar o barco a bom porto – ou, pelo menos, ao porto possível.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.