Deus: masculino ou feminino?

Começamos com música e humor e, para quem ouvir até ao fim, talvez uns passos de dança. Contemplamos a criação do homem e da mulher, crescemos em sabedoria com uma pequena lição de hebreu e, no final, saboreamos um poema de Baudelaire.

Começamos com música e humor e, para quem ouvir até ao fim, talvez uns passos de dança. Contemplamos a criação do homem e da mulher, crescemos em sabedoria com uma pequena lição de hebreu e, no final, saboreamos um poema de Baudelaire.

1. Como mel para a boca

Aïcha vem do termo árabe a’ish que significa «viva». Ish, a raiz semítica que está tão presente no livro do Génesis, estará no centro da reflexão de hoje. Mas antes disso, com Ish, a’ish, Aïcha… seria impensável não começar primeiro pela “mais bonita canção de amor do século XX”: Aïcha de Khaled! É que, como vamos falar do amor entre o homem e a mulher, esta ‘pérola’ da canção francesa vem mesmo a calhar…

 

2. Textos Bíblicos 

Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. (Gn 1, 27)

Da costela que retirara do homem, o SENHOR Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem.
Então, o homem exclamou:
«Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher (ishah), visto ter sido tirada do homem (ish)!» (Gn 2, 22-23). 


3. O esclarecimento 

I Enigma do dia I 

“criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher.”

Este versículo do capítulo 1 do livro do Génesis significa que podemos contemplar a imagem de Deus na humanidade sexuada. Hum… como assim? 🤨

  • Quererá isto dizer que a imagem de Deus no ser humano se encontra, para além do sexo, no que é comum ao homem e à mulher?
  • Ou, pelo contrário, é preciso imaginar um Deus duplamente sexuado? (traduzido na gíria atual: o Livro do Génesis representa Deus como genderfree ou andrógino?)

Início da resposta (mantemos o suspense):

Os versículos extraídos do segundo capítulo do Génesis permitem-nos aprofundar a reflexão:

Chamar-se-á mulher (ishah), visto ter sido tirada do homem (ish)!

Para percebermos o sentido do primeiro versículo, aproveitamos para estudar só um bocadinho de hebreu: vai ver como é simples e como ajuda muito a esclarecer as coisas.

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Anónimo, A criação de Eva (mosaico, 1516), Cúpula da Basílica de São Marcos, Veneza, Itália

| Pequena lição de Hebreu |

Em hebreu, ish significa «homem» e isha «mulher»:

  • ish שיא (homem)
  • isha השא (mulher)

Repare bem nas duas palavras. São parecidas, diferindo apenas numa letra a mais ou a menos:

  • ish tem um yod (י) a mais do que isha, mas não tem hé (ה)
  • isha contém hé (ה), mas não um yod (י)

Se unirmos as duas letras que distinguem o homem da mulher (e que representam simbolicamente os seus órgãos sexuais), obtemos:

ה י : estas duas letras (que se leem da direita para a esquerda) formam a palavra YH, que pode ler-se «Ya».

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Michelangelo (1475-1564), A criação de Eva (fresco, 1509-1510), Capela Sistina, Roma, Itália

 

| A imagem de Deus na união do homem e da mulher |

Saber isto muda alguma coisa? Tudo! Se é um leitor frequente, saberá já que no Antigo Testamento aparecem várias vezes as quatro letras YHWH para referir Deus. YH é a forma abreviada deste nome.
Basicamente, é como uma conta de somar:

 letra própria do nome do homem י

+letra própria do nome da mulher ה

= o Nome de Deus ה  י 

Eis então o que este “jogo de letras” simboliza: a imagem que Deus projeta ao criar a humanidade pode ser contemplada na união do homem e da mulher!

Deus está para além de todas as categorias sexuais da humanidade. Deus é Amor e o caráter sexuado do homem e da mulher é um dos símbolos por excelência desta verdade. Enfim, como cantaram todos os grandes poetas da História, o amor conjugal é transcendente!


4. Uma palavra final 

Ao descrever o sentimento verdadeiramente espiritual do homem quando beija a sua esposa, Baudelaire não se enganou:

Qual uma inflada vaga oriunda
Dos gelos frementes,
Quando a água em tua boca inunda
A arcada dos dentes,
Bebo de um vinho que me infunde
Amargura e calma,
Um líquido céu que difunde
Astros em minha alma!

(

Charles Baudelaire, «A Serpente que dança», secção «Spleen e Ideal» n’As Flores do Mal, Paris. Edição bilingue, tradução por Ivan Junqueira, Brasil 2006.)

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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