Bruxelão, coerência e populismos

Contra populismos, a solução é estudar os programas políticos, as problemáticas sociais complexas como imigração ou automatização da indústria, é estudar a história política da Europa. Senão as acusações de populismo são também populistas.

Contra populismos, a solução é estudar os programas políticos, as problemáticas sociais complexas como imigração ou automatização da indústria, é estudar a história política da Europa. Senão as acusações de populismo são também populistas.

Estamos em semana de eleições europeias. Como bem previa em setembro José Ribeiro e Castro, o desinteresse pelo assunto é quase generalizado. Infelizmente. A única forma de contrariar esse desinteresse é forçando a discussão. Trazendo o que está em questão para cima da mesa. Ainda que seja na semana antes das eleições, continuamos a ir a tempo de um último sprint que ajude a perceber a real importância daquilo que está em jogo nestas eleições. A Europa é a nossa realidade. Somos Europa. E por isso, não podemos não dar prioridade à Europa.

Há três assuntos que parecem ter sido insuficientemente discutidos até agora pela opinião pública. Não é obrigatório concordar com eles. Só é obrigatório discuti-los. Por partes:

Bruxelão

Independentemente da forma como digam ver a Europa, a maior parte dos nossos partidos vive apaixonado por legislação europeia. Gostamos de uniformidade. Isto tem sido particularmente visível à esquerda, onde no campo do ambiente ou das questões relacionadas com as várias igualdades (de oportunidades, de identidade, de género…) há cada vez maior pressão para legislar a partir de Bruxelas. Não estranharia que a próxima legislatura ficasse marcada por um maior peso da Europa na vida das comunidades, com os efeitos que isso pode ter nos orçamentos de Estado de cada país, na centralização crescente e na cada vez maior determinação pela esfera pública daquilo que supostamente deveria ser privado. A versão europeia do Estadão está para chegar. Chama-se Bruxelão.

Creio que esta é uma tendência altamente prejudicial para o nosso país. Precisamos da Europa para assegurar prosperidade e paz, como Schuman definia na declaração fundadora da CEE. Mas precisamos também de poder ter posições sobre relações diplomáticas externas, ou sobre regulação de mercados financeiros, ou sobre indicadores de sucesso escolar, ou sobre (…) que nasçam daquilo que é a realidade do nosso país – e para isso precisamos de garantir que existem mecanismos de representação adequados a nível Europeu. Arrisco dizer que a subsidiariedade que o Tratado de Roma previa deixou de ser a regra. Bruxelas é agora uma estrutura supra-nacional, com um governo próprio e com uma imponente carga burocrática nos seus processos de decisão. O afastamento que essa supra-estrutura gera entre cidadãos e instituições é fortíssimo e tem que ser combatido. Confiar no Bruxelão é viver verticalmente na ilusão de que é a legislação que nos salva – em vez de confiar que há um elemento comunitário, horizontal, de proximidade, que é a base de toda a democracia e de toda a identidade do ocidente contemporâneo.

O afastamento que essa supra-estrutura gera entre cidadãos e instituições é fortíssimo e tem que ser combatido. Confiar no Bruxelão é viver verticalmente na ilusão de que é a legislação que nos salva – em vez de confiar que há um elemento comunitário, horizontal, de proximidade, que é a base de toda a democracia.

A somar a isso, claro, há o facto de Bruxelas se ter transformado naquilo que originalmente não foi pensado que fosse. Ao contrário dos EUA, a Europa não nasceu como uma estrutura de tipo federativo. Tudo aquilo que a CEE pretendia era ser uma instituição cooperativa que promovesse a prosperidade e a paz. Esta transformação da Europa numa organização que tem poder sobre os Estados, ainda que legítima, é opaca – porque decide a partir do nível supra-estatal o que não foi conscientemente decidido a nível nacional. A questão pode ser só de desinformação. Em todo o caso, não deixa de se pôr. O Bruxelão, com toda a centralização que implica, devia ser algo a discutir antes de ser assumido como uma realidade inevitável.

Uma apologia da coerência

Foi chocante ouvir a insinuação do cabeça de lista do CDS de que o acolhimento de refugiados trazia consigo um aumentar do risco de fenómenos terroristas nos países de asilo. É uma insinuação e não uma acusação, é certo. Mas dizer que os ataques terroristas – não especificados – em solo europeu tiveram refugiados como agentes insinua que o acolhimento de refugiados é algo a evitar porque coloca em risco a segurança dos cidadãos. Esta é uma insinuação mentirosa, claro. Para quem a ouve de passagem, não diz que “alguns requerentes de asilo mal intencionados são terroristas” mas sim que “todos os refugiados são potencialmente terroristas”. E isto é uma insinuação mentirosa. Os refugiados não são, por definição, potencialmente terroristas: são, isso sim, pessoas e famílias que por razões económicas, políticas, religiosas, ambientais, tiveram que abandonar a custo o seu país, muitas vezes arriscando travessias que duram quase quatro anos (nos quais se atravessam desertos, o Mediterrâneo e as brutalidades da Líbia) para chegar finalmente a um lugar onde a vida possa não estar ameaçada diariamente. Estabelecer uma ligação directa entre terrorismo e a migração forçada do local ao qual se pertence não é correcto.

Custa que um discurso destes não seja publicamente corrigido pelo partido de quem o profere. O que parece revelar é o desejo de captar votos de pessoas que se reveriam neste discurso – por desinformação, ou por preconceito racista, ou por falta de horizonte para entender a complexidade do fenómeno migratório mundial. Mas isso não está certo. Quem não tem o privilégio de se rodear de pessoas que pensam bem pode pensar mal sem que disso seja culpado. Mas a quem se rodeia de pessoas que pensam bem, pensar mal corresponde à falência dos deveres que se tem para com aqueles que confiam no resultado daquilo que é pensado. Isto é grave. Muito grave.

Um partido não pode ser cristão na sua matriz e ao mesmo tempo ter um discurso em relação a migrantes e refugiados que, além de fazer insinuações mentirosas, abdica também de cuidar de maneira particular “do órfão, da viúva e do estrangeiro”

Há aqui uma apologia da coerência que tem que ser feita. Um partido não pode ser cristão na sua matriz e ao mesmo tempo ter um discurso em relação a migrantes e refugiados que, além de fazer insinuações mentirosas, abdica também de cuidar de maneira particular “do órfão, da viúva e do estrangeiro” (Deuteronómio 10:18). Algo vai muito mal se a incoerência se apodera do discurso e das práticas, como neste caso parece ter-se apropriado do CDS (note-se que a mesma acusação de incoerência poderia ser feita ao restantes partidos – concretamente ao BE, por exemplo, que na sua apologia da inquestionável autonomia do indivíduo em decidir que identidade quer ter é cada vez mais um partido radicalmente ultra-liberal e cada vez menos um partido marxista, ou trotskista, como na sua génese quis ser). Combater a incoerência é combater a arbitrariedade motivada pelo desejo de captar votos fáceis e desinformados. Nestas eleições europeias, quanto mais se pensar bem em assuntos difíceis como o dos refugiados, melhor. Que é parecido com dizer: quanto menos incoerência da parte de todos os partidos em assuntos como o dos refugiados, como o do emprego digno e humanizante, ou como o do multilateralismo e o envolvimento em conflitos armados, melhor.

A acusação fácil dos populismos

Poucos insultos têm sido mais usados nos últimos anos do que acusar algum político ou algum partido político de ser populista. Trump é populista, Salvini é populista, Farage é populista. O termo aplica-se quase sempre a homens e quase sempre a políticos de direita e caracteriza geralmente discursos pouco rigorosos nas suas análises, anti-establishment, que apelam a um sentimento nacionalista, que são sectários e que fazem promessas infundadas (quase sempre no campo da economia ou das fronteiras).

Trump é populista, Salvini é populista, Farage é populista – mas também quase todos os seus opositores o são. Quase todos os opositores destes políticos populistas abusam dos lugares comuns, da informação pouco rigorosa e dos argumentos emocionais nos seus discursos. Este é o maior problema que enfrentamos nas eleições que aí vêm.

Infelizmente, a generalização deste termo é um inimigo do discurso político sério. A popularidade pode ser uma coisa a promover: Marcelo Rebelo de Sousa é popular, Malala é popular, o Papa Francisco é popular. Pode-se ser popular sem que se seja perigoso. As maiorias, afinal, são maiorias porque reconhecem que há alguma coisa que as une. O importante é garantir que aquilo que une uma maioria seja alguma coisa que é boa e que merece ser defendida. Por isso é que não basta acusar alguém de ser populista. É preciso dizer por que é que certa posição é populista e qual é que é a alternativa a esse populismo. Isto é o que tem faltado a quase todos os nossos discursos políticos. Trump é populista, Salvini é populista, Farage é populista – mas também quase todos os seus opositores o são. Quase todos os opositores destes políticos populistas abusam dos lugares comuns, da informação pouco rigorosa e dos argumentos emocionais nos seus discursos. Este é o maior problema que enfrentamos nas eleições que aí vêm.

Não há outra solução para este problema que não passe por discutir informadamente. Contra os populismos, a única solução é o estudo dos programas dos partidos políticos, o estudo das problemáticas sociais mais complexas como as da imigração ou da automatização da indústria, ou o estudo da história política da Europa. Se isto não for feito, então o mais provável é que todas as acusações de populismo sejam também elas populistas.

O P. Francisco Mota, sj é assistente do Serviço Jesuíta aos Refugiados

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.