À margem

Se a sexualidade é uma banalidade cedo demais, não será de agora; e se os jovens de hoje estão sem critério e desorientados, hoje que têm mais educação, informação e apoio do que nunca, que dizer dos jovens de antanho?

Se a sexualidade é uma banalidade cedo demais, não será de agora; e se os jovens de hoje estão sem critério e desorientados, hoje que têm mais educação, informação e apoio do que nunca, que dizer dos jovens de antanho?

O Ponto SJ recebeu um pedido de publicação deste texto como resposta a um artigo de Inês Teotónio Pereira. 

Na Igreja da Misericórdia em Tavira há um conjunto de painéis de azulejos setecentistas que representam as quatorze Obras da Misericórdia. O painel que nos exorta a corrigir os que erram, na altura grafado como «castigar os que erram», apresenta um homem com uma palmatória – daquelas de cinco furos – a pedir a mão de um rapazinho de seis ou sete anos, o tal que errou. E que por Misericórdia vamos castigar, quer dizer, corrigir.

Inês Teotónio Pereira, ex-deputada na Assembleia da República pelo CDS-PP, assina um artigo no Ponto SJ, a 18 de Abril de 2022, sobre a moralidade sexual, a moralidade cristã, e a Igreja. O artigo é louvável na exortação que faz às paróquias, aos Bispos e à Igreja para que acolham os seus crentes, sobretudo os jovens, independentemente da sua moral sexual. É louvável por mostrar como a exclusão ou condenação destes crentes é grave para os que por isso passam. A cronista desenvolve porém um tom maternalista na sua perspectiva, em que os jovens estão sexualmente desorientados, sem critério e vulneráveis.

É verdade que uma diferença grande entre a catequese e a educação que as escolas e alguns pais dão às crianças está na educação sexual, que nas escolas se quer informada, respeitosa e completa. Como portanto conciliar com Cristo os jovens assim educados, e também os noivos que vivem em união de facto, os namorados não-castos, os divorciados, os LGBTQ+? Como ser queer na Igreja? Todos devem ser acolhidos pela Igreja, responde Inês Teotónio Pereira, porque a moral sexual não é o centro da vida cristã, nem da moralidade da Igreja. Ao invés de excluir crentes pela sua prática sexual, devem os cristãos observar mais as Obras da Misericórdia. Cristo é o que nos junta.

Como é que podemos, porém, castigar – perdão, corrigir – quem erra? E como discernir os erros dos outros? Inês Teotónio Pereira considera que os jovens são inocentes num mundo onde há sérias adversidades sexuais, ‘a sexualidade é uma banalidade cedo demais, em que a complexidade desta dimensão na vida dos jovens os torna vulneráveis, sem critério e desorientados’. Desorientados será um termo difícil neste contexto, por despertar um eco gráfico do conceito «tendências desordenadas» com que o Catecismo descreve a homossexualidade. Esta ideia de um actual apocalipse sexual, que não é de Inês Teotónio Pereira, mas da Igreja, parte de dois pensamentos equívocos: a noção difusa e errada do que foi a sexualidade ao longo da história da humanidade; e a ideia de que antes não havia problemas parecidos com os de agora. As questões da moralidade sexual são antigas e ao longo do tempo têm sido pensadas e resolvidas de formas diferentes. Como no tempo de C. S. Lewis, autor que Teotónio Pereira cita para argumentar que não é necessário falar tanto de sexualidade. Basta ler os muitos relatos sobre a intensa vida dos habitantes de Oxford no tempo em que Lewis lá ensinava: a homossexualidade, a ‘não-castidade’ no namoro e o travestismo eram práticas relativamente comuns.

Como podemos, então, corrigir quem erra? Se estar sem critério significa duvidar dos critérios propostos no Catecismo em relação a alguns aspectos da sexualidade, é certo que os Bispos terão grandes trabalhos na tentativa de conciliar estas dúvidas com a Igreja.

Havia práticas que hoje nos parecem mais distantes, e sobre as quais hoje se emitem juízos morais. Basta ler Camilo Castelo Branco (o próprio filho de um casal não-casado) para se perceber a idade de casamento no séc. XIX, (Camilo casa aos 16, com uma jovem de 15), e para se entender a dimensão e casualidade do adultério. Para não falar na zoofilia, o incesto e violação sistemática em várias comunidades de Portugal até há bem poucas décadas. A história oferece muitos exemplos a não seguir, mas deve ser conhecida. Se a sexualidade é uma banalidade cedo demais, não será de agora; e se os jovens de hoje estão sem critério e desorientados, hoje que têm mais educação, informação e apoio do que nunca, que dizer dos jovens de antanho?

Como podemos, então, corrigir quem erra? Se estar sem critério significa duvidar dos critérios propostos no Catecismo em relação a alguns aspectos da sexualidade, é certo que os Bispos terão grandes trabalhos na tentativa de conciliar estas dúvidas com a Igreja. Se estar desorientado significa questionar as propostas dos pastores eclesiásticos sobre castidade, sobre masturbação, sobre a comunhão de divorciados, então é natural que o rebanho vá perdendo ovelhas. Não parece, assim, que os jovens sejam inocentemente ignorantes, como escreve Teotónio Pereira, especialmente sobre sexualidade; são pelo contrário especialmente informados e, em paralelo, ocasionalmente críticos das
propostas da Igreja. Mas se há ignorância sobre o amor cristão das comunidades católicas, sobre a aceitação e acolhimento que nos espera em cada paróquia, em cada confissão compreensiva, isso parte infelizmente da experiência traumática destes grupos. Pessoas que, por serem destacadas neste artigo de Inês Teotónio Pereira, são já marginais: os noivos em união de facto, os prostitutos, os não castos, os LGBTQ+, os divorciados, etc., a lista é longa.

Ainda assim, é louvável o artigo de Inês Teotónio Pereira: uma voz entre as que hoje se erguem para tentar criar uma comunidade espiritual em Cristo capaz de acolher todos os seus crentes, com amor. Tristemente, um artigo de 16 de Abril de 2022 no The Economist revela como diminuem os números de presos, pobres, licenciados, e jovens, que são católicos. O Sínodo certamente reflectirá quais as razões destes dados. Recordo, em jeito de sugestão, o religioso painel de azulejos da Igreja da Misericórdia, em Tavira, onde está prestes a cair sobre a mão da criança a dura palmatória de quem castiga os que erram.

Fotografia de Ryan Tauss – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.