Iam chegando ensonados, cansados e um pouco contrariados. Era Ano Novo. Um sábado de manhã, uma manhã cinzenta e sem luz, no início de janeiro. Uns apareciam com olhar triste e vago, outros eram portadores de esperança, talvez a esperança que caracteriza o começo de cada ano. Tinham uma aparência cuidada, como quem se veste para um momento festivo. Chegaram a tomar café ou chá e a observar com curiosidade. Era um grupo de migrantes, homens, mulheres e jovens com idades compreendidas entre os 17 e os 57 anos. Oriundos de diferentes partes do mundo, a maioria era de origem africana.
Cumprimentaram-me timidamente, mas com sentido afeto. Num ápice, prepararam a sala e saudaram os voluntários que tinham preparado a sessão. Dois jovens voluntários (um francês e um alemão), que trabalham diariamente com este grupo, estavam bem dispostos e confiantes. Afinal, naquela manhã nebulosa, convenceram e “trouxeram” quase toda a gente para escutar uma história. A sala estava, volvidos alguns minutos, cheia de pessoas e de entusiasmo.
Escrevo sobre “A Hora do Conto”, dinamizada todos os sábados de manhã, pela Concha e pelo Nuno, no Centro Pedro Arrupe, no Bairro das Galinheiras, uma obra do JRS – Serviço Jesuíta aos Refugiados. Na verdade, esta sessão era para migrantes acolhidos naquele centro, em Lisboa, todos em situação de grande vulnerabilidade.
Se, inicialmente, pareciam estar naquela sala por obrigação, visto que esta iniciativa não é de caráter facultativo, rapidamente se percebia, pelos seus rostos e reações, que estavam a “entrar” na dinâmica preparada pelos voluntários. Líderes carismáticos inspiradores e inspirados, estes voluntários envolveram o grupo de forma original e impactante. O seu tom de voz, a sua postura corporal, o seu olhar terno e a sua assertividade convocavam cada um dos migrantes e estes respondiam com um ato de presença integral, adentrando-se na(s) história(s) de forma profunda.
A arte, concretamente a literatura, eleva o Homem. Fá-lo sentir, pensar, partilhar, questionar e refletir sobre si e sobre o mundo. A arte de contar histórias salva, na verdadeira aceção da palavra!
O empenho e o entusiasmo com que falavam, a alegria com que interagiam e o companheirismo que evidenciavam faziam esquecer as quezílias e as incompatibilidades que, invariavelmente, marcam a vida numa casa como o Centro Pedro Arrupe.
Após alguns exercícios de aquecimento, todos leram a história do dia e, a partir dela, constituíram grupos de reflexão e partilha acerca da mesma. O empenho e o entusiasmo com que falavam, a alegria com que interagiam e o companheirismo que evidenciavam faziam esquecer as quezílias e as incompatibilidades que, invariavelmente, marcam a vida numa casa como o Centro Pedro Arrupe. Sim, viver em comunidade é bastante complexo e partilhar espaços comuns com pessoas muito diferentes constitui-se como um grande desafio. A tarefa seguinte consistiu num plenário, espaço-tempo em que cada um se pôde exprimir livremente sobre as questões colocadas a partir da História do Colibri. Cada sorriso, cada partilha, cada ideia apresentada tinham um denominador comum: a confiança e a esperança. Portadores de uma Alegria profunda, estes voluntários fazem aquilo que pouca gente está disposta a fazer, mesmo de forma remunerada. Olham-nos no rosto, sabem o seu nome e a sua história, aceitam-nos como são e potenciam o que de melhor há naquelas pessoas em situação de fragilidade. As idiossincrasias destes migrantes unem em vez de afastarem. Todos reconheciam, nas suas partilhas, que devemos ser “colibris” e a mensagem transmitida naquela sessão interpelou cada um a fazer a sua parte para transformar o mundo e para o tornar um lugar melhor.
Oxalá este Ano Jubilar possa ser marcado por gestos concretos como este, de disponibilidade para o serviço e para o outro, em que cada um sai do seu conforto e da sua “redoma”, como me aconteceu naquela manhã de janeiro, para levar Esperança e Confiança aos mais esquecidos e excluídos da sociedade.
Sigamos o sonho do Padre Pedro Arrupe, SJ, que vê a sua obra continuada no Jesuit Refugee Service, em Portugal, JRS – Serviço Jesuíta aos Refugiados, para que aqueles que vivem à margem, nas periferias existenciais de cidades que os descartam em vez de acolherem, possam ser verdadeiramente acolhidos e respeitados ao jeito de Jesus.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.