Há 50 anos que Wendell Berry escreve numa cabana, à luz do dia (sem energia, nem água), onde diz que pode estar na presença do mundo.
Esta cabana, chamada Long Legged House, tinha sido inicialmente construída e habitada pelo seu tio Matthew Curran. Berry reconstruiu-a, quando, aos 30 anos, procurando uma casa e um sentido de pertença, deixa o seu cargo de professor de literatura na Universidade de Nova York e decide com a sua mulher regressar a Henry County, Kentucky, a sua terra, cujos campos são cultivados pela sua família há cinco gerações. Dividiu a partir daí o tempo dos seus dias entre a agricultura e a escrita “concretizando a sua vocação de defender a agricultura sustentável, e esforçando-se para garantir que os americanos rurais – uma minoria escarnecida, desprezada e cada vez menor – não pereça completamente”, como escreve a filha do seu primeiro editor, Dorothy Wickenden.
Berry afirma, em escritos autobiográficos: “Nunca pude trabalhar com prazer de frente para a parede ou de qualquer outra forma cercado das coisas. (…) preciso de estar na presença do mundo. Porque não escrever e viver ao mesmo tempo?”
Berry escreve porque vive, escreve porque a pertença que experimenta ao seu lugar o convoca à escrita, a ser a voz da sua região, que segundo ele próprio “nunca tinha tido um escritor”. Nesses mesmos escritos autobiográficos, diz: “como escritor eu tive este lugar como meu destino”.
Berry tem algo para nos ensinar que não poderíamos por nós próprios aprender, pois é uma capacidade trabalhada a vida inteira de pertencer a um lugar específico – Henry County -, que pede um cuidado, uma responsabilidade, um modo de habitar únicos.
Embora o cuidado e a preocupação com a sua terra muitas vezes pesassem sobre ele, pude ver quão verdadeira e profundamente a amava, que o seu amor a tornara bela, e que esta paisagem desafiadora era a sua musa e a sua medida enquanto escritor e agricultor.
O que Berry nos deixa, de facto, é mais do que uma obra, são os pequenos gestos diários, domésticos, de toda uma vida “situada”, “enraizada”. Berry é sinal de que o homem, tal como qualquer animal ou criatura, sobrevive através da adequação a um habitat: não basta conhecer cientificamente a terra para a saber habitar, mas ser moldado pelo lugar, adequando-se a ele (“we have not made our lives to fit our places”, diz num poema). O homem depende dos laços de afeto que lhe trazem o verdadeiro conhecimento da terra, um conhecimento que molda a vida humana. Berry diz, numa entrevista radiofónica: “O que o amor, o afeto, envolve é o contacto corporal, a presença. O que um agricultor pode conhecer ao caminhar pelo campo a pé…! Muda a sua compreensão da natureza da terra: que passa de paisagem a criatura companheira”. A defesa das comunidades de agricultores americanas não é uma preocupação social exclusivamente dirigida a esses, mas dirigida a todos os homens, pois os agricultores são os porta-voz da relação dos homens com a terra.
Um leitor e amigo de Berry (Kyle T. Kramer) descreve a visita que fez à sua quinta. “A sua quinta, embora situada num terreno difícil e íngreme (…), era um testemunho de décadas de cuidados pacientes e reabilitadores. Wendell parecia ter um conhecimento íntimo de cada metro quadrado, e passámos grande parte da minha visita a caminhar pelo seu bosque, a identificar árvores e falar sobre os seus esforços para curar uma encosta marcada por ravinas de erosão. Embora o cuidado e a preocupação com a sua terra muitas vezes pesassem sobre ele, pude ver quão verdadeira e profundamente a amava, que o seu amor a tornara bela, e que esta paisagem desafiadora era a sua musa e a sua medida enquanto escritor e agricultor. Tenho aquela terra em mente quando leio o seu trabalho, sabendo que a sua escrita não vem simplesmente da imaginação abstrata, mas de uma relação duradoura com um lugar que ele conhece bem. Wendell Berry é um homem de palavra.”
Berry nota na linguagem de quem é “verdadeiramente local” um conhecimento íntimo e, por isso profundo, uma sabedoria densa e bem enraizada.
Podemos conhecer Berry nas suas palavras, mas também na própria voz – na sua entoação, cadência e pequenas inflexões -, no modo de gesticular, no seu sentido de humor, que nos dão testemunho de um corpo que encarna uma aliança sincera com a sua terra. Dorothy Wickenden descreve-o como “um jovem esguio de trinta anos, sentado com os cotovelos sobre os joelhos, a falar numa cadência lenta do Kentucky e gesticulando com mãos grandes e expressivas”. Em todos estes detalhes, Berry é manifestação de muita história de relação que o antecede mas de que é herdeiro. “A minha ligação a este lugar vem não só da íntima familiaridade que começou na infância mas também do conhecimento ainda mais profundo e misterioso que é herdado, transmitido através de memórias e nomes e gestos e sentimentos, e em tons e inflexões de voz”.
Berry nota na linguagem de quem é “verdadeiramente local” um conhecimento íntimo e, por isso profundo, uma sabedoria densa e bem enraizada. A língua das “pessoas que são realmente locais, que realmente sabem onde estão e vivem lá há muito tempo (…) tem um poder de designação que é absolutamente preciso”. Estas “conhecem a paisagem em comum e conhecem-na intimamente, minuciosamente; falam dos detalhes, com conhecimento e responsabilidade, de um lugar bem conhecido, um ecossistema bem conhecido e uma comunidade bem conhecida”.
Os romances e contos de Berry são de uma concretude imensa, carregada de “palavras vibrantes”, – como é, para o próprio, a linguagem de seus pais e avós (“as palavras ‘lugar’ e ‘casa’ e até ‘nascimento’ tinham uma complexidade e vibração de significados que atualmente a maioria de nós perdeu”) – e de gestos plenos ou, podemos até dizer, gestos que encarnam rituais. Como diz, em The Unsettling of America, “cultivar a própria comida é um sacramento”.
Conhecemos Berry pela voz dos que exprimem amizade por ele e nos dão a conhecer o amigo, vizinho, pai, marido, professor.
Berry faz com naturalidade um paralelismo entre agricultura e literatura -“a forma de uma boa quinta é tão complexa, tão exigente, intelectualmente e imaginativamente como a forma de um bom romance; é uma arte muito elevada” – que dá a ver como, para o autor, escrever é um exercício de afeto, imaginação e inteligência, equivalente à arte de potenciar a fecundidade da terra; o escritor procura a forma justa, fecunda, das palavras, tal como o agricultor procura a da sua intervenção nos processos naturais.
Conhecemos Berry pela voz dos que exprimem amizade por ele e nos dão a conhecer o amigo, vizinho, pai, marido, professor. Cruzamo-nos com vários leitores que iniciaram correspondência com ele, e, por vezes, regressaram à terra, acompanhados pela sua amizade. Conhecemo-lo também através do lugar onde vive. Conhecer, ou ouvir a descrição, da casa de Tanya e Wendell Berry, a terra lavrada em torno, não é conhecer o lugar dentro e sobre o qual vive a família; o aspeto, a vida desta quinta são continuação da vida desta família, dos seus gestos de cuidado. Conhecer a forma desta quinta é conhecer a forma de centenas de anos de cooperação amorosa.
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