Voto fútil

Se olharmos para lá do muro e baixarmos a guarda na hipersensibilidade, que apenas busca confirmação e consolo, surgem muitos mais consensos na nossa sociedade, do que parecem ditar os nossos preconceitos.

Uma das expressões que o ambiente de fação em que habitamos – especialmente na política e no futebol, mas também na religião ou mesmo na nossa comunidade social e familiar – vem assumindo é a da hipersensibilidade (no sentido de estado de alerta permanente e inflexível). Esta hipersensibilidade nem seria propriamente criticável não fora expor-nos, sem grande decoro, à incoerência e ao ridículo (e, convenhamos, a incoerência e o ridículo até poderão divertir, mas não são bonitos).

Ora a hipersensibilidade de que falo (a tal de fação) corresponde, no fundo, a essa fina capacidade de identificar os nossos (as opiniões, as ideias, os títulos, os posts) – para os secundarmos e divulgarmos a todo o transe – e, com a mesma fina pontaria, identificarmos o que nos indigna do lado de lá e, portanto, confirma a nossa posição do lado de cá. E é assim, insisto, tanto na política como no futebol, na religião como na nossa comunidade social e familiar.

O problema desta hipersensibilidade é o que ela revela e, sobretudo, o que gera. Revela que não estamos senão à procura de confirmação e arrimo para as nossas ideias. E arrasa a predisposição que ainda pudéssemos ter de nos abrirmos aos pontos de vista e às razões do lado de lá. E é -confesso – este fechamento entre os diferentes lados que mais me preocupa nesse tal fenómeno da hipersensibilidade de fação. Não serão tanto as incoerências, que passam quer por tolerarmos os pecadilhos dos nossos como nos fazem exigir aos adversários o que sabemos (ou já nem sabemos porque nem vemos) que os nossos não cumprem. É mesmo essa barreira que erguemos (hoje dir‑se‑ia muro) entre o nosso lado e o lado de lá, que nos nega ver o que há de meritório e de comum nesse lado de lá.

Ao contrário do que dirão (e ditarão) os nossos preconceitos, há muitos mais consensos na nossa sociedade. Da política ao futebol, da religião à família, há temas que de tão fundadores e mesmo naturais (eu sei que arriscar este adjetivo é, nos dias que passam, e tristemente, também arriscar o consenso), não serão, no essencial, controvertidos. No futebol poderia enumerar uns quantos (no plano organizativo, no plano da gestão das receitas ou da produção de conteúdos). Na religião ou na família não faltariam temas de consenso (a atenção aos mais desprotegidos, a assistência aos filhos menores ou aos pais idosos, a igualdade entre cônjuges). E também na política, onde esses consensos poderiam parecer mais remotos, têmo-los em diversos domínios e até em áreas de enorme importância. Poderia referir-me ao ambiente e território, mas escolho aqui o tema da justiça.

O problema desta hipersensibilidade é o que ela revela e, sobretudo, o que gera. Revela que não estamos senão à procura de confirmação e arrimo para as nossas ideias. E arrasa a predisposição que ainda pudéssemos ter de nos abrirmos aos pontos de vista e às razões do lado de lá. E é -confesso – este fechamento entre os diferentes lados que mais me preocupa nesse tal fenómeno da hipersensibilidade de fação.

Por estes dias, em que ganham força as palavras de ordem em arruadas e comícios, pouco se tratará das questões de substância. Mas se formos aos programas eleitorais e, mais a fundo, se percorrermos a história das ideias e das propostas dos vários partidos em matéria de organização da justiça, identificamos muitos mais pontos em comum do que se poderia antecipar.

Começamos, desde logo, com o consenso quanto ao diagnóstico (o que, como bem sabemos, nem sempre sucede). A morosidade da justiça, a instabilidade legislativa, a complexidade do sistema, a falta de meios, de estrutura e de especialização. Com mais ou menos palavras, ninguém se nega a estes chavões (e eu não hesito em dizer que ainda bem). O curioso, contudo, é que se avançarmos para as soluções vemos também que algumas são comuns e, se não o são, poderiam perfeitamente sê-lo. A necessidade de os juízes disporem de consultores (com esse ou outro nome) no apoio à sua missão de julgar. O reforço da digitalização e da desmaterialização. A aposta na estabilidade legislativa.

Eu, neste propósito de propor que se olhe para lá do muro, que se baixe a guarda na hipersensibilidade que apenas busca confirmação e consolo, proponho também que se pense na justiça e no óbvio e meritório que todos propõem. Isolo uma simples ideia – a da estabilidade legislativa. É talvez, e simultaneamente, a mais facilmente consensual e mais rapidamente desprezada. Todos estão de acordo. Todos a exigem e proclamam. Mas todos, mal se vêem com acesso ao Diário da República, a esquecem e desprezam. Ainda na semana passada, por exemplo (e olhem que é um «bom» exemplo) os mesmos Códigos (no caso o de procedimento e de processo tributário e a Lei da Arbitragem Tributária), foram alterados duas vezes, em dias seguidos e por diferentes leis …

É tempo de apelo ao voto. Não o vou fazer aqui. Mas faço um, em jeito de apelo. Pedia que mexessem o mínimo e, quando necessário, de uma assentada, nas nossas massacradas leis. Se o fizerem – e faço votos de que o façam – cumprirão o programa de todos (e poupam-se à «hipersensibilidade»). Pode parecer fútil, mas é este o meu voto útil.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.