Um tempo de renovação

Apesar daquilo que estamos a passar não ser comparável, tem sido a experiência de aproximar o meu coração ao coração das pessoas que vivem constantemente num clima de incertezas, de solidão, de guerras, de doenças sem cura, de fome.

Quarentena. A palavra que mais tenho ouvido ultimamente devido à pandemia do Coronavírus.

Quaresma. Tempo de preparação para a Páscoa cristã, que este ano teve início dia 26 de fevereiro.

Faltam ainda 27 dias para a Páscoa. É uma boa altura para quem pode e ainda não o fez, optar por ficar em casa. Talvez se o fizermos todos a partir de hoje, os que não evidenciarem quaisquer sintomas até lá, poderão passar a Páscoa juntos. Até poderá dar mais sentido a esse dia do ano tão especial para a comunidade cristã.

Caminho de deserto. Sofrimento. E, por fim, amor.

Numa primeira fase da Quaresma, a comunidade católica, tem presente a imagem de deserto. Antes da Páscoa, Jesus caminhou quarenta dias no deserto, onde foi tentado pelo Diabo.

A quarentena que nos propõem é uma situação atípica, desconfortável, que exige regra e sacrifício. “Mas se fores só àquele café, com aquelas três pessoas nada vai acontecer. És jovem, por isso mesmo que apanhes o vírus, o mais provável é que passe em poucas semanas”. “Se fores ao ginásio a horas extraordinárias, colocares a toalha direitinha e não tocares em nada, o mais provável é que não contraias doença nenhuma”. “Já tinhas essa reunião marcada e é quase certo que o vírus não te faça mal, porque és e sempre foste saudável”

Que resposta vamos dar a este tipo de pensamento (tentador)?

Que resposta oferece a Igreja para o tempo de deserto que é a Quaresma? Jejum, oração e caridade. Talvez esta seja uma boa resposta para grande parte das questões que inundam a nossa cabeça numa altura destas.

Jejum no sentido literal e figurativo. Não sabemos quanto tempo a pandemia vai durar, e não sabemos como estará o mercado nos próximos tempos. Já estamos a presenciar o caos em supermercados e farmácias. Muitos de nós encontramo-nos numa posição privilegiada, com reservas de alimentação, e não só, nas nossas dispensas, preparados para   uma situação de isolamento duradoura, sem fazermos qualquer tipo de alteração nos nossos hábitos ou alimentação. E se nos disciplinarmos a um jejum suportável que nos possibilite ajudar pessoas que estão a passar maior dificuldade, na eventualidade de agravamento do contexto? Espero que não seja o caso. Todavia, uma alimentação sem excessos, mal não fará. Para além do sentido literal, refiro o jejum de forma simbólica para o conceito de sacrifício. Esse poderá exigir um esforço maior. Um esforço de não estarmos com pessoas que gostamos, apenas por uns tempos. É tempo de fazer “jejum” pelos mais frágeis, idosos e outros casos de população de risco, e de assumir este sacrifício como uma responsabilidade.

É necessário o cuidado de mostrar a caridade não só como inspiração para a ação individual, mas também como força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e de renovar profundamente as estruturas, organizações sociais, e ordenamentos jurídicos desde o interior. (da Doutrina Social da Igreja)

Oração é um convite para todos. Para os que não se sentem tão confortáveis com o conceito, refiro-me a um tempo de silêncio interior. Para mim, tem sido a experiência de aproximar o meu coração ao coração das pessoas que sofrem uma vida inteira por viverem constantemente num clima de incertezas, de solidão, de guerras, de doenças sem cura, de fome. O que estamos a passar agora não é comparável, porém comove-me a imagem do aproximar dos nossos corações. Temos tempo para refletir e recomendo que o façamos. O mundo que se transforma constantemente a um ritmo acelerado e que nos pressiona a assumir esse ritmo como nosso também, pediu-nos que parássemos. É inédito.

“Quero arranjar tempo para uma oração de qualidade, mas ultimamente tem sido impossível”. “Preciso de parar em casa e ter tempo para a família, mas agora como o trabalho tem apertado não consigo mesmo”. “Quero parar e ter tempo para pensar sobre isso, mas tem sido uma correria”

Com a quarentena, foi-nos proporcionado (forçado) esse tempo. Tempo este que poderá ser oportuno para (re)focar. Para (re)estabelecer prioridades. Para, assim, sermos capazes de amar mais e melhor. Será que uma doença global permitirá quebrar a nossa indiferença pelos sofrimentos dos outros? Se calhar, a distância entre as nossas realidades estava a impedir-nos de ver que a justiça social passa pela caridade.

E chegamos ao terceiro ponto da proposta da Igreja Católica para o tempo de Quaresma.

A caridade é um conceito que, infelizmente, tende a ir muito contra o que a sociedade nos propõe nos tempos modernos, em que tudo é à volta do “eu”. Um dos sintomas deste egocentrismo é a cultura da indiferença, tão referida pelo Papa Francisco, que identifica este male como um abismo e um atentado à Humanidade. A caridade relembra-nos que, não vivemos sozinhos no mundo. A verdade de cada uma das pessoas que nele habita, é a verdade de todos. É a verdade de cada um de nós. Nesse sentido, não devemos ser alheios ao que se passa no mundo e, pelo contrário, devemos ter compaixão pelo próximo. É a compaixão que nos leva pelo caminho da verdadeira justiça ao permitir que compreendamos a realidade do outro.

A Doutrina Social da Igreja Católica sublinha a importância deste pilar para enfrentar os problemas do mundo. “É necessário o cuidado de mostrar a caridade não só como inspiração para a ação individual, mas também como força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e de renovar profundamente as estruturas, organizações sociais, e ordenamentos jurídicos desde o interior. Nesta perspetiva, a caridade torna-se caridade social e política: a caridade social leva-nos a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une”.

Que este seja um tempo de oração pelos afetados, vítimas mortais e respetivas famílias, de responsabilização para protegermos os mais frágeis do vírus, e de renovação dos nossos corações endurecidos face aos sofrimentos do mundo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.