Um País “Ordenadamente” pobre

As Ordens profissionais são vistas como garante do bom exercício de certas profissões, em defesa do interesse público. Na verdade, são sobretudo barreiras à entrada nessas profissões que visam essencialmente defender os que já as exercem.

No meu último artigo, argumentei que só se mudarmos a receita conseguiremos ser mais produtivos e, portanto,  capazes de distribuir mais rendimento por toda a população. Hoje foco-me num exemplo concreto disto mesmo.

Quando a União Europeia (UE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) nos emprestaram dinheiro em 2011/12, para resolver a (mais recente) crise de financiamento da nossa economia, impuseram um conjunto de condições. A condicionalidade é uma das características cruciais dos programas de assistência financeira: só faz sentido emprestar dinheiro a um país se ele se comprometer a executar políticas que reduzam a probabilidade de ter de recorrer novamente a ajuda externa.

O programa de assistência financeira da UE e do FMI a Portugal 2011-2014 incluiu o compromisso do País adotar um conjunto muito alargado de medidas que cobriam essencialmente três tipos de condicionalidades: (i) consolidar as finanças públicas, (ii) sanear o sistema financeiro, e (iii) aumentar a competitividade da nossa economia.

No que respeita ao aumento da competitividade, uma das medidas com que Portugal se comprometeu foi a de promover, até março de 2012 a “aprovação pela Assembleia da República da legislação para liberalizar o acesso e o exercício de profissões reguladas.”

O regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais foi estabelecido, de facto, com a Lei n.º 2/2013 de 10 de janeiro. Contudo, na prática e na substância, este regime nada liberalizou: em Portugal continua a haver um conjunto enorme de profissões às quais só podem aceder as pessoas que ingressem na respetiva Ordem. A Lei diz que “São atribuições das associações públicas profissionais, nos termos da lei: (…) c) A regulação do acesso e do exercício da profissão; d) A concessão, em exclusivo, dos títulos profissionais das profissões que representem; (…)”.

A lista patente no sítio de internet do Conselho Nacional das Ordens Profissionais enumera 16 Ordens profissionais. Existe pelo menos mais uma – a Ordem dos assistentes sociais, criada no Verão passado. Dizem-me que há tentativas de criação de outras, mas não encontrei informação pública nesse sentido. É certo que algumas das Ordens existentes não impedem (ainda?) o acesso à profissão. Mas a maior parte impede.

Eu, por exemplo, tenho a sorte de ser economista. A Ordem dos Economistas não tem qualquer poder de restrição de acesso à profissão. Nunca fui, nem tenciono vir a ser associado da Ordem dos economistas. Como digo por vezes aos meus estudantes, se um empresário quiser contratar um analfabeto para gerir a sua empresa é perfeitamente livre de o fazer; rapidamente vai perceber que faz mal, claro; e vai procurar um economista ou gestor competente; ou – acrescento eu com ênfase – uma pessoa com outra formação que saiba gerir bem o negócio em causa.

Numa palavra, a licenciatura (na linguagem de Bolonha, licenciatura e mestrado) afinal não serve para aquilo que a própria palavra indica – licenciar, dar licença ao seu detentor para o exercício duma profissão. Não consigo imaginar um maior atestado de incompetência às Universidades que concedem os graus académicos conducentes a estas profissões.

Pensemos num outro exemplo, o de um psicólogo. Depois de concluir 3 anos de licenciatura e 2 de mestrado (que inclui um estágio curricular), tem de cumprir um estágio profissional de 1 ano. O supervisor, o plano e o relatório final deste estágio têm de ser aprovados pela Ordem dos psicólogos; esta supostamente visita o estagiário durante o estágio (conheço casos em que tal não aconteceu); no final, o relatório terá de ser aprovado por uma comissão de avaliação de estágios da Ordem (o que já vi acontecer de forma muito opaca); e, finalmente, depois de aceite na profissão, o psicólogo passa a ser obrigado a pagar quotas de valor muito significativo.

Numa palavra, a licenciatura (na linguagem de Bolonha, licenciatura e mestrado) afinal não serve para aquilo que a própria palavra indica – licenciar, dar licença ao seu detentor para o exercício duma profissão. Não consigo imaginar um maior atestado de incompetência às Universidades que concedem os graus académicos conducentes a estas profissões.

Compreendo que algumas licenciaturas – como a de direito – não fornecem todas as competências para algumas das profissões específicas a que abririam a porta. Mais em geral, pode até argumentar-se que as Universidades fornecem saber mais teórico do que aplicado e portanto não devem licenciar. Eu acho este argumento muito esticado; por um lado, e em geral, só a prática permite que o licenciado se transforme (ou não) num bom profissional, mas não vejo em que é que isso implica a criação de uma Ordem que limita o acesso à profissão, sobretudo depois de cursos que já tiveram componentes práticas pesadas, como por exemplo medicina; por outro lado, e talvez mais em particular, licenciaturas como a de direito, que abrem a porta a várias profissões (advogado, magistrado) só regulam algumas dessas profissões com uma Ordem (no caso, a dos advogados).

É sabido o principal argumento para suportar o poder das Ordens – a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços prestados pelos profissionais do sector (cf. alínea (a) do artigo 1º da Lei n.º 2/2013). E a Ordem dos médicos é sempre apresentada como o melhor exemplo desta necessidade; curiosamente, nunca se aponta como exemplo a Ordem dos médicos veterinários, ou a Ordem dos contabilistas certificados – seriam, na minha opinião, exemplos fracos.

Mas note-se, desde já, que mesmo que elencada em primeiro lugar, aquela atribuição das Ordens é logo secundada pela representação e a defesa dos interesses gerais da profissão (alínea (b) do art. 1º) e por tudo o que tem a ver com a proteção dos profissionais incumbentes; para além das acima citadas alíneas (c) e (d) do art. 1º, atente-se em: “k) A participação na elaboração da legislação que diga respeito ao acesso e exercício das respetivas profissões; l) A participação nos processos oficiais de acreditação e na avaliação dos cursos que dão acesso à profissão; m) O reconhecimento de qualificações profissionais obtidas fora do território nacional, nos termos da lei, do direito da União Europeia ou de convenção internacional.”

E vejo muitos responsáveis por Ordens que passaram de profissionais do sector a burocratas com atividade iminentemente política, que se auto-justifica e auto-recompensa.

A proteção dos consumidores e do público em geral deve ser executada pelo Estado, através de leis e regulamentos adequados e, sobretudo, através duma efetiva regulação do exercício da profissão e do seu mercado, nos casos em tal seja particularmente sensível. Esta confiança na regulação pública pode parecer uma proposição pouco liberal, mas o ponto central é que raramente se é bom juiz em causa própria, e por isso a regulação de um mercado não pode ser feita dando poder desproporcional a quem já é parte interessada nesse mercado. Estando assegurado que o sector está regulado, cabe ao consumidor escolher o profissional que entender para lhe prestar o serviço; em caso de insatisfação, para além de recorrer para as instâncias competentes (entidade reguladora e tribunais), muda de fornecedor e passa a palavra. É com este funcionamento livre – mas regulado – dos mercados que se promove a eficácia e eficiência sócio-económica.

À luz dum pensamento liberal, eu vejo as Ordens como barreiras à entrada, que visam manter rendimentos desproporcionadamente elevados aos profissionais que já estão no mercado – aquilo a que chamamos “rendas”, e que em alguns contextos se tem chamado rendas excessivas para enfatizar a injustiça que lhes subjaz. Vejo, ainda, que muitas Ordens funcionam como grupos de interesse e de pressão junto das autoridades, lutando por benefícios próprios – aquilo a que chamamos “lobbies”, que em si não seriam estritamente negativos se devidamente compensados por forças de sentido oposto com poder análogo. E vejo muitos responsáveis por Ordens que passaram de profissionais do sector a burocratas com atividade iminentemente política, que se auto-justifica e auto-recompensa.

É justo reconhecer muitas pessoas bem-intencionadas em algumas Ordens profissionais. Por exemplo, o Bastonário da Ordem dos médicos – pessoa que me parece bem-intencionada e competente, da qual tenho a melhor das impressões – veio recentemente a público pedir desculpa pela ineficiência do Conselho Disciplinar da região Sul da Ordem no caso do “bebé sem rosto”. Mas a verdade é que não faltam exemplos em que, como neste, tendo falhado a supervisão e a regulação estatal, falhou também a Ordem; e – bem mais grave – muito frequentemente a Ordem volta a falhar porque assume como prioridade proteger os “seus” profissionais (algo que neste caso concreto não é possível, dada a sua extrema gravidade).

Há quem diga que Portugal “foi para além da Troika”. Pois bem (ou melhor, pois mal), no caso da liberalização do acesso e do exercício de profissões reguladas, não foi além, ficou aquém. Este é um exemplo da falta de coragem para mudar a receita que nos mantém estagnados.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.