Uma vez mais, no dia 1 de maio, as ruas de muitas cidades se encherão de bandeiras vermelhas e as nossas televisões de discursos inflamados acerca da Luta dos Trabalhadores contra as insídias do Capital. No entanto, deixar que a efeméride seja “propriedade exclusiva” de uma determinada fação política, por um lado, ou considerar que se trata de um resquício anacrónico de lutas passadas, por outro, é passar ao lado de uma oportunidade para refletir sobre a sociedade em que vivemos e fechar-nos ao apelo para a transformar.
Neste dia, a Igreja instituiu a celebração de S. José Operário, invocação que quer ser expressão da proximidade – possivelmente mais desejada que real – dos cristãos às problemáticas e ao mundo do trabalho. Não se trata de uma mera operação de marketing, com a qual a Igreja pretende fazer de conta que está do lado dos trabalhadores nas suas lutas sociais, com o aproveitamento de uma ocorrência mundana para fazer proselitismo junto de um público para o qual a mensagem evangélica soa a ópio do povo. Nesta “colagem”, reconhecemos o convite que é feito à Igreja de escutar o Espírito que sopra e fala também fora dela, no mundo e na história, através daquilo a que o Concilio Vaticano II chama os “sinais dos tempos”. As lutas do movimento operário de que o 1º de maio é símbolo foram – e são – portanto uma chamada de atenção à Igreja para que esta dirija uma palavra profética à sociedade e às estruturas do mundo contemporâneo.
No centro da mensagem da Igreja acerca do trabalho está a sua eminente dignidade. O Papa Francisco, no seu encontro com o mundo do trabalho em Génova, há um ano atrás, sublinhou com insistência que é no trabalho que cada ser humano adulto encontra a sua dignidade, ao colocar as suas mãos, a sua mente e o seu coração ao serviço da obra da Criação. O Papa e a Igreja, no entanto, não têm uma visão ingénua da realidade e sabem que se é verdade que «na terra há poucas alegrias maiores do que as que sentimos ao trabalhar», também «há poucas dores maiores do que as do trabalho, quando ele explora, esmaga, humilha e mata».
No centro da mensagem da Igreja acerca do trabalho está a sua eminente dignidade. O Papa Francisco, no seu encontro com o mundo do trabalho em Génova, há um ano atrás, sublinhou com insistência que é no trabalho que cada ser humano adulto encontra a sua dignidade, ao colocar as suas mãos, a sua mente e o seu coração ao serviço da obra da Criação.
Quando é que o trabalho explora, esmaga, humilha e mata? Desde os seus inícios, o movimento operário, mas também a Doutrina social da Igreja, têm denunciado a injustiça das condições e da remuneração de tantos trabalhadores. Se parece certo que não é possível uma igualdade imposta pela força, também ela limitadora da dignidade do trabalho, não podemos descansar na entrega ao “mercado” de todas as decisões relativas ao contrato de trabalho: duração, condições, estabilidade, remuneração, etc. Acolher e viver uma verdadeira “espiritualidade cristã do trabalho” exige, antes de mais, manter os olhos abertos para reconhecer a injustiça e responder com coragem, em quanto cidadãos, eleitores, consumidores… e mais ainda se temos algum tipo de responsabilidade (seja numa empresa, numa associação, na política ou outra estrutura social)!
A primeira, porque mais fácil de detetar, das injustiças é a desigualdade no rendimento. Correndo o risco da demagogia, deveria incomodar-nos pensar que o Cristiano Ronaldo ganha o equivalente a cerca de 4000 (quatro mil!) vezes o salário mínimo, auferido por um em cada cinco trabalhadores portugueses. Muitos outros exemplos de desigualdade salarial poderiam ser dados, especialmente no interior de uma mesma empresa, e um primeiro (pequeno e possível) passo para lutar contra elas é exigir transparência e escrutínio público.
Além da questão de remuneração, a relação laboral e o mundo do trabalho são palco de muitas outras formas, muitas vezes subtis, de exploração, de transformação do ser humano em mercadoria. Uma primeira é o recurso à ameaça do desemprego, presente ou futuro, para sujeitar quem está numa posição negocial mais débil: «se não estás satisfeito, há muita gente a querer ocupar o teu lugar!». Mas não menos perversos são os mecanismos que enrijecem de tal modo o contrato de trabalho ou o sobrecarregam de tamanha burocracia que desincentivam a contratação, excluindo de facto trabalhadores válidos, especialmente jovens, condenando-os a um limbo de “inutilidade social”.
Mas nem só de denúncia é feita a visão cristã do trabalho. A Igreja não tem medo de afirmar e defender a bondade da figura do empresário, enquanto detentor de um papel fundamental. Na sua perspectiva, a empresa não é principalmente uma estrutura destinada à realização de lucro, mas uma unidade orgânica de produção de riqueza, resolvendo problemas, respondendo a necessidades e melhorando a vida das pessoas. Nesta ótica humanista, não faz sentido uma criação de riqueza material feita à custa da instrumentalização ou mesmo “coisificação” daquelas pessoas que trabalham para que um “bem” ou “serviço” seja produzido e oferecido. Na citada intervenção, o Papa distingue o (bom) empresário e o especulador, recorrendo à imagem evangélica do pastor, contrapondo-a à do mercenário (Jo 10,11-13): «o especulador não ama a sua empresa nem os trabalhadores, mas só os vê como meios para produzir lucro. Usa empresa e trabalhadores para lucrar. Demitir, fechar, deslocar a empresa não lhe cria problema algum, pois o especulador usa, instrumentaliza, “devora” pessoas e meios para satisfazer os seus objetivos de lucro. Com o especulador, a economia perde o seu rosto e perde os rostos». Lutar pela dignidade do trabalho é portanto, de modo especial, saber discernir entre empresa e especulação, entre criação de (verdadeira) riqueza e (mero) lucro.
Mas nem só de denúncia é feita a visão cristã do trabalho. A Igreja não tem medo de afirmar e defender a bondade da figura do empresário, enquanto detentor de um papel fundamental. Na sua perspectiva, a empresa não é principalmente uma estrutura destinada à realização de lucro, mas uma unidade orgânica de produção de riqueza, resolvendo problemas, respondendo a necessidades e melhorando a vida das pessoas. Nesta ótica humanista, não faz sentido uma criação de riqueza material feita à custa da instrumentalização ou mesmo “coisificação” daquelas pessoas que trabalham para que um “bem” ou “serviço” seja produzido e oferecido.
Uma última observação, talvez a mais fácil de concretizar, diz respeito ao descanso. O trabalho digno – trabalho que dignifica – exige o descanso. Já na primeira página da Bíblia, o relato da Criação não fica completo sem o repouso: «Concluída, no sétimo dia, toda a obra que tinha feito, Deus repousou, no sétimo dia, de todo o trabalho por Ele realizado» (Gn 2,2). Na tradição judaico-cristã, o repouso é sagrado e, por isso, encontra-se intimamente ligado à dignidade do trabalho. Um dos grandes males do nosso tempo talvez seja, precisamente, ter esquecido o descanso, substituindo-o por “lazer” e criando o paradoxo segundo o qual só é possível “descansar” à custa do trabalho de outros! A velha máxima marxista “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos” pode tornar-se num convite, ligeiramente subversivo, a renunciar a todas as formas de exploração, a começar pela negação do descanso, contribuindo muito concretamente para a redescoberta da dignidade do trabalho.
Um dos grandes males do nosso tempo talvez seja, precisamente, ter esquecido o descanso, substituindo-o por “lazer” e criando o paradoxo segundo o qual só é possível “descansar” à custa do trabalho de outros!
Gozemos então este feriado – com ou sem marchas e bandeiras vermelhas – saboreando um verdadeiro descanso: o do encontro, das pequenas alegrias, dos gestos simples, da contemplação da beleza e do silêncio…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.