Ser mãe, basta sofrer

Jesus dormia na barca enquanto uma tempestade apavorava os discípulos, o Pai não impediu o filho pródigo de ir, Abraão levou o filho ao cimo do monte para o sacrificar. Demoramos tempo a perceber estas parábolas e cada uma destas lições.

Confesso que não foi por fé, também não foi por nenhuma razão virtuosa, acho que é por feitio. Mas a verdade é que nunca tive medo do destino dos meus filhos, daquilo que lhes pode acontecer, dos perigos que espreitam em cada esquina. Durmo sossegada quando eles saem à noite, não entro em pânico cada vez que uma doença me entra em casa, não contabilizo os riscos de os deixar passear de bicicleta sem capacete. Vivo assim há mais de 20 anos, sem pensar no mal. Nem sei viver de outra maneira. Mas não é por fé, nem por fezada, numa espécie de crença de que eles estão protegidos e de que somos imunes a dramas e a tragédias. Também não é por coragem. Simplesmente não penso nisso, tal como eles, e racionalmente nem sei viver de outra maneira. Tenho a mundana noção de que os meus poderes são limitados, tal como tenho a certeza da minha incapacidade em prever, conter ou mesmo protegê-los dos males do mundo. Sou incompetente em impedir o acaso, os azares e o sofrimento. Só assim, consciente desta pura inconsciência, é que consegui ter meia dúzia de filhos e manter a sanidade mental.

A verdade é que sempre tive medo do medo. O medo, ao contrário da esperança, bloqueia e certamente teria condicionado a minha liberdade em ter filhos e em vê-los crescer, tropeçar, chorar no escuro. Sei, desde que sou mãe, que não há maiores angústias do aquelas que os nossos filhos nos trazem. Envelhecemos, colecionamos as suas cicatrizes, trememos de medo quando eles perdem o pé, seja no mar, seja na vida. Mas descobri cedo, no primeiro engasgo, na primeira febre, no primeiro susto, que seria impossível viver centrada nos riscos que corre a vida de cada um só por ser uma vida. Vidas que, pensando duas vezes, estão presas por fios.

Em cada uma destas passagens, Deus tenta ensinar-nos a confiar e explica que o nosso bem maior, a vida e a vida dos nossos filhos, não depende de nós, mas Dele. Descansem, durmam, relaxem, que dos vossos filhos trato Eu, diz-nos Ele. Eles voltam, eles não morrem, ninguém se afoga.

Já passei por alguns sobressaltos que me puseram em sentido e eu, tal como todas as mães, olhamos para todas as que viveram e vivem verdadeiras tragédias como heroínas e sobreviventes do Apocalipse. As doenças, os desastres, os desgostos, os acidentes acontecem. E não há frase mais parva do que esta. Os acidentes acontecem, mas não deviam! Os nossos filhos deviam ser os únicos imunes, por eles e por nós. Como viver no fio da navalha que é ser mãe?

Jesus dormia na barca enquanto uma tempestade apavorava os discípulos, o Pai não impediu o filho pródigo de ir, Abraão levou o filho ao cimo do monte pronto para o sacrificar. Demoramos tempo a perceber cada uma destas parábolas e estas lições das Escrituras. Em todas elas fica a dúvida: porque é que o sofrimento não foi evitado, se podia? Porque é que o Pai não fechou o filho no quarto recusando-lhe a herança, poupando-o e poupando-se a tantas angústias? Por que razão Jesus não acalmou a tempestade deixando os discípulos regressar em paz e sossego? Não haveria outra forma de explicar a Abraão que Deus não devia estar num plano inferior ao do seu filho? Até porque todas estas histórias acabam sempre bem.

Em cada uma destas passagens, Deus tenta ensinar-nos a confiar e explica que o nosso bem maior, a vida, e a vida dos nossos filhos, não depende de nós, mas D’Ele. Descansem, durmam, relaxem, que dos vossos filhos trato Eu, diz-nos Ele. Eles voltam, eles não morrem, ninguém se afoga. O contrário disto, ou seja, o medo, é uma forma de sabotagem, é a via verde para uma existência insuportável, sem alegria, sem esperança, e por isso, sem Deus. Os nossos filhos são sinais de Deus e ensinam-nos a imitar Jesus. “Ser mãe, basta sofrer”, li eu há uns anos num quadro que estava à venda numa feirinha. Comprei-o e ofereci-o à minha mãe no Dia da Mãe sem compreender verdadeiramente o seu significado: na altura, não tinha filhos. Quando nasceu o primeiro, a minha mãe deu-me de volta esta máxima de feira que é uma catequese. Sim, para ser mãe basta saber sofrer, e confiar.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.