Clara passeava no jardim com as outras crianças.
O céu era verde sobre o relvado, a água era dourada sob as pontes.
Outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados.
O guarda-civil sorria, passavam bicicletas, a menina pisou a relva para pegar num pássaro.
O mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos.
Não havia perigo nos afagos dos adultos.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insectos.
Clara tinha medo de perder a camioneta das 11 horas,
Esperava cartas que tardavam em chegar e nem sempre podia usar um vestido novo.
Mas passeava no jardim pela manhã…
É que havia jardins e havia manhãs naquele tempo!
Carlos Drummond de Andrade, Lembrança de um Mundo antigo
I.
José Saramago disse que os livros deviam ser vendidos com uma cinta a dizer: «– Cuidado, tem uma pessoa dentro!”.
O destas crianças devia ser vendido com uma cinta a dizer: “- Muito cuidado, têm várias pessoas dentro!”.
Elas acreditam.
Acreditam que não basta escutar o mar e as suas vagas.
Basta meditar na pausa do vento, na direcção dos rochedos – esses que abarcam as canoas da bravura -, a norte, a este, a oeste ou a sul dos afectos.
Elas, que falam com o tempo, acreditam na voz do seu azul, nas almas que dançam, nas paredes nuas da ventania.
Ler estes silêncios de água doce e de olhar tão tristemente belo, tão velho que se fez novo, tão novo que se quer velho, com todo o seu ritmo e musicalidade, sabe a maresia, daquela brisa fresca de que se fazem os poemas interditos, as histórias menos felizes destes meninos e meninas que, por quererem também ser poemas, merecem tanto ser felizes.
Por isso, as palavras que os podem consolar sobram-me.
E são poemas.
Mas tento-os escrevinhar, com o choque ainda na voz.
II.
Escreveria, eu, poeta aprendiz, esta carta a um adulto que foi tocado, contra toda a decência, durante a sua pequenez:
«Não sei o teu nome.
Apenas me contaram que te magoaram quando ainda eras menino, no tempo das cerejas e quando andavas pelos templos.
Sei que doeu e que ainda dói.
Como se tivesses sido arrancado de um pedaço de carne que continua a queimar e que teima em permanecer em ti, sem dó ou piedade.
O que te aconteceu nunca foi afecto ou amor, essa outra indecente obsessão.
Essa história que dizem ser a tua não podia ter acontecido.
Uma criança não pode assim ser tocada.
Nem por um malmequer.
Pisaram o teu corpo com saliva e musgo morto e pediram-te silêncio.
Minaram a tua voz.
Compraram a tua dor.
Não vales pelo que te fizeram mas por aquilo que fizeres apesar do que te fizeram.
É hora de acordar e de contares, com palavras tuas, as que são feitas dos teus ditongos e com os teus adjectivos, o que te aconteceu.
Para que o segredo de outro como tu possa cair enfim e se possa ainda quebrar o ciclo.
O que te fez isso não é um homem de Deus.
Invoca-o mas não é seu aliado.
Não temas.
Há por aqui quem te queira ouvir e acredite na tua história.
Sem pestanejar.
As feridas que ainda tens no teu peito podem ainda ser curadas.
Com o tempo certo.
Com o elixir certo.
Com as pessoas certas – as que te amaram com verdade e que te continuarão a amar, apesar das pedras soltas no caminho, das sovas e tareias que a vida te deu, dos teus desesperos e das tuas perdas de luz.
Sossega na tua voz.
Não escolhas o silêncio.
Fala.
Como se a tua história se tivesse ontem passado.
Não vales pelo que te fizeram mas por aquilo que fizeres apesar do que te fizeram.
É hora de acordar e de contares, com palavras tuas, as que são feitas dos teus ditongos e com os teus adjectivos, o que te aconteceu.
Como se não houvesse senão veludo azul na tua alma e na paleta da tua cor.
Escuta o teu coração.
Como a Marta já escreveu, com extrema delicadeza, ausculta-o com mãos de fada, revivifica-o com massagem delicada, hidratando-o com água de rosas, repondo-o no seu espaço, efectuando as ligações necessárias, e não descurando o cérebro, que frequentemente, está de todo em todo dissociado do mesmo, trabalhando em contravapor permanente.
Se chorares, seca as lágrimas com a língua da esperança.
No fim desta delicada operação, confere os efeitos e verás se encontras a alma.
Se a encontrares, nunca mais a percas de vista.
É demasiado preciosa para prescindires dela.
A voz ganhará esporas e a tua história será aquela que tu quiseres.
Como um homem sábio já escreveu:
Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim.
*
No seu regresso à cidade, Buda encontrou-se com um transeunte que, impressionado pela luz e energia que aquele irradiava, o questionou:
– Você é um Deus? – Não, respondeu Buda.
– Você é um santo? – Não, respondeu Buda novamente.
– Então, você é um príncipe? – Não, – respondeu Buda – Só estou acordado.
Temos todos de estar permanentemente acordados pois essa é a nossa luz, aquela que ilumina os casarios e que te vai vigiar o sono a partir de agora.
A partir do dia em que fales.
Em que contes a tua história.
Sabes, o sistema tem a sua porção de Poder na mão, tentando optimizar a protecção da criança vítima de crimes sexuais, mesmo que só denunciante em adulto, adulto este que tem pleno direito a que a Justiça não potencie e prolongue o seu natural sofrimento!
Mas não tenhas ilusões – o Poder só é necessário para fazer o Mal.
E não esqueças o principal – para fazer tudo o resto, muitas vezes, basta o AMOR!
Sou o Paulo»
III.
Fica a carta por dizer e por escrever. Aquele poema que lhes cola na pele e que tem aí ainda marcadas estrofes e metáforas.
E ele pode querer ditar, para o futuro, o desejável aumento do prazo de prescrição dos procedimentos criminais em crimes sexuais contra crianças.
Porque a poesia também passa por aí – pensando quimeras e fazendo-as surgir.
Sobretudo para um juiz que também é – e deve ser – um ser de afectos.
Com o respeito pela inviolável e suprema vida e pelos direitos fundamentais de cada ser humano e de cada criança, já cidadão desde que nasce, invocados na convicção, na voz, na pena, na intenção, na vocação e na prática de cada um de nós, obreiros da esperança.
Ainda a tempo de constatar a diferença entre uma mãe que teve 16 filhos e outra que, afinal, teve um filho 16 vezes…
Porque falar disto também pode ser – e é – um acto de AMOR, o mesmo que o Senhor Deus nos deu para ofertar sem saldos ou meias-palavras…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.