Os professores e a nuvem negra

É urgente parar esta rampa deslizante de degradação, é urgente pararmos e pensarmos em conjunto a pegada negra (ou os buracos) que estamos a deixar para as futuras gerações numa componente que é crucial, a sua educação.

Nunca, nem mesmo depois de 1974, os professores foram o centro de uma política articulada, coerente e prolongada de valorização profissional e social. Agora é tempo de colher os frutos dessa não-política!

A qualidade dos professores (científica, pedagógica e didática) é o fator mais determinante do sucesso das aprendizagens dos alunos. Em Portugal, vivemos há décadas uma situação muito preocupante de abandono social e político dos professores, que tem e terá um forte impacto no presente e no futuro da educação.

1. Pontos de partida:

-o corpo docente está muito envelhecido: cerca de 60% dos educadores e professores têm 45 ou mais anos de idade e cerca de 47% têm mais de 50 anos de idade; com menos de 35 anos, apenas existirão 3%.

-encaminham-se para os cursos de formação inicial de professores jovens com as mais baixas médias de conclusão do ensino secundário (Expresso, 8/11/2017).

-no concurso de acesso ao ensino superior de 2017,  as vagas a concurso em licenciaturas em educação básica (ensino público) foram preenchidas com candidatos com nota mínima inferior a 13 valores (82%) e com nota mínima inferior a 11 valores (37%);

-este ano letivo de 2018 desceu perto de 30% o número de candidatos a estes cursos de educação básica, formação inicial de professores (além do Português, foi introduzida a disciplina de Matemática nos requisitos de acesso) (Expresso, 17/11/2018)

-são constantes as notícias sobre a precariedade laboral entre os professores mais novos; os docentes que estão a ser contratados têm de se deslocar para longe, não têm estabilidade profissional, têm contratos precários, muitos só conseguem horários incompletos, e gastam em aluguer de quartos uma boa parte do ordenado;

-os novos professores que estão a conseguir efetivar de novo na profissão raramente têm menos de 40 anos, ou seja, raramente são mesmo novos e estão desgastados por 10 ou 15 anos de precariedade e por saltar de escola para escola;

-o impacto da segunda drástica descida da natalidade ainda não se verificou na sua mais ampla dimensão (vai ainda no 1º ciclo) e o número global de docentes vai continuar a descer nos próximos anos;

-nos próximos 15 anos devem reformar-se perto de 30.000 professores, mas muitos deles não serão substituídos;

-os professores, como se sabe, estão em luta contra o Governo devido à contagem do tempo de serviço, o que provocou uma enorme confusão nas avaliações finais do ano letivo passado, …

Nunca, nem mesmo depois de 1974, os professores foram o centro de uma política articulada, coerente e prolongada de valorização profissional e social. Agora é tempo de colher os frutos dessa não-política!

2. O que dizem alguns estudos?

Alguns estudos feitos recentemente permitem concluir que:

-30% dos docentes inquiridos estavam em burnout, ou seja, exaustos emocionalmente e sem qualquer sentimento de realização profissional” e 20 a 25% dos docentes sofrem de stress, ansiedade e depressão”(estudo do ISPA, Público, 2/2/2016).

-33% dos professores inquiridos gostariam de deixar de fazer o que estão a fazer, lecionar (estudo FML, 2016);

-35% dos professores inquiridos define a sua relação com o seu exercício profissional como bastante negativa: “exausta” (19%), desiludida (13%) e “baralhada”, “desesperada” ou “negativa” (3%). (ibidem)

-91% considera que nos últimos anos diminuiu o prestígio da sua profissão, 84% afirma que a sociedade não valoriza os professores, 85% assinala que o ME não valoriza o seu trabalho, 87% considera que diminuiu o tempo e as condições que os professores têm para refletir sobre as suas práticas educativas, e 31% afirma que não se sente motivado para ensinar (ibidem)

-a falta de respeito dos alunos é a principal causa de insatisfação para 59% dos professores, seguida do facto de os pais não se preocuparem com a educação dos filhos para 74% (ibidem)

-apenas 10% dos professores portugueses consideram que a sua profissão é valorizada pela sociedade (contra 31% nos países da OCDE – resultados do TALIS)

-da existência de muito bons professores depende a qualidade das aprendizagens dos alunos, mormente dos que apresentam algumas ou muitas dificuldades de aprendizagem (OCDE);

Além disso, o mundo está a mudar muito, as crianças que chegam à escola também, as ciências médicas e cognitivas estão a evoluir imenso, e…  vai ser preciso rever a formação inicial de professores, a sua indução profissional e a sua formação contínua,…

Apenas 10% dos professores portugueses consideram que a sua profissão é valorizada pela sociedade.

3. Começando a juntar os dados:

-para começar, só se consegue um corpo docente com muito bons profissionais se se começar por atrair os melhores alunos para esta profissão (o que não está a acontecer, antes pelo contrário);

-o recrutamento de novos docentes (que não são docentes novos) está a ser feito, e assim vai continuar a ser, com base apenas nos anos de exercício itinerante e desgastante da profissão e pela média final do curso;

-se o retrato que aqui deixo é feito com base em dados de 2016 e 2017, neste momento, após a erosão provocada pelas lutas pela “contagem integral do tempo de serviço”, os célebres 9 meses, 4 meses e 2 dias, o estado anímico dos docentes será ainda pior (pelo que vislumbro nas escolas);

-ao longo das últimas décadas os professores não se organizaram convenientemente para que o conhecimento profissional, didático e pedagógico, fosse sendo acumulado;

-no contexto profissional em que os docentes trabalham, que são as escolas, os sentimentos aqui referidos de frustração, ansiedade, insegurança, cansaço e exaustão repercutem-se de imediato nas salas de aula, no clima escolar e no ethos de cada instituição educativa, comprometendo a qualidade e a eficácia do trabalho escolar.

Neste contexto profissional, com tantos professores envelhecidos, sem motivação e sem esperança, o professor vai-se tornando um ser “cansado de fazer e de poder”, que entra em conflito consigo mesmo (como diz Han) exprimindo o despojamento de sentido do exercício profissional.

Mas a realidade docente é mais do que aquilo que acabei de pintar, dirão muitos! Claro que sim! Há muitos professores competentes e muito apaixonados pelo que fazem e existem muitas instituições escolares onde o clima não é maioritariamente este, onde a dedicação profissional e a qualidade do desempenho são excelentes. Não é isso que está aqui em questão, mas sim o facto de tantos professores serem tão afetados estruturalmente no exercício da sua profissão. Se fossem apenas 33%, seriam cerca de 40.000 (quarenta mil!) e se um só desses fosse professor dos nossos filhos ou dos meus netos…eu ficaria muito preocupado!

É urgente parar esta rampa deslizante de degradação, é urgente pararmos e pensarmos em conjunto a pegada negra (ou os buracos) que estamos a deixar para as futuras gerações numa componente que é crucial, a sua educação. Poderá um professor desmotivado motivar um aluno desmotivado? Poderá um cego guiar outro cego?

Fazemos de conta, desdenhamos, passamos adiante, procedemos nesta como em tantas outras áreas ou situações. Não enfrentamos os problemas. Atiramos as dificuldades para debaixo do tapete.

Esta nuvem de cansaço e frustração, aliada à pequena possibilidade de efetiva renovação dos profissionais, é claramente uma nuvem negra sobre o nosso futuro comum. Temos de ser capazes de transformar fatalidades em responsabilidades, como defende Innerarity, responsabilidades sociais e políticas, de pais, professores, alunos, comunidade, partidos, Assembleia da República.

Temos de ser capazes de transformar fatalidades em responsabilidades.

Não gostava de vir de novo com o exemplo da Finlândia… mas este país decidiu, há cerca de 40 anos, dar uma volta completa à sua política sobre os professores, definindo no seu Parlamento um plano arrojado, multidimensional e de longo prazo, consciente de que era aí que estava a “pedra de toque” de que era preciso cuidar para melhorar séria e sustentadamente a educação. Volvidos estes anos, a profissão de professor é a mais disputada pelos jovens no acesso ao ensino superior, bem acima de de médico e de outras. É simples, é só fazer o que tem de ser feito, travando os desastres anunciados.

É de uma política deste tipo que estamos a precisar, para incentivar os tantos milhares de docentes experientes, competentes e dedicados, para vir a recrutar os melhores para esta tão nobre profissão, para selecionar os melhores diplomados para virem a ser educadores e professores, para dignificar os profissionais que cuidam dos alicerces da sociedade e da cultura, no presente e no futuro. Este é cada vez mais incerto, mas o que as crianças e jovens levarem na sua cabeça, nas suas mãos e no seu coração para o futuro, isso lá estará!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.