Os bairros sociais e o nosso sobressalto

Chocante é o facto das imagens de um bairro social insalubre e inacabado, dominado por problemas sociais sensíveis ser motivo de surpresa e, no fundo, representar novidade nas redações e na nossa consciências.

A reboque do episódio (episódio aqui no seu sentido mais literal de «ocasional») entre as forças de segurança e os residentes num dos bairros sociais do Seixal (conhecido por Bairro da Jamaica, mas que figura nos documentos oficiais como «Urbanização do Vale de Chícharos»), entretivemo-nos por uns dias com as imagens de um bairro social na periferia de Lisboa, onde as infraestruturas são visivelmente precárias, onde a realidade social é difícil, e onde a presença e controlo policial geram tensão. Impressionou-nos perceber que em pleno século XXI (adoramos dizer, em tom indignado, «pleno século XXI») ainda vivem milhares de pessoas às portas de Lisboa (também adoramos dizer, no mesmo tom indignado, «às portas de Lisboa»), naquelas condições de duvidosa segurança e salubridade.

O debate que dominou a «ordem do dia» – à boa moda atual, da política, da comunicação social, das redes sociais – foi aquele que o episódio mais imediatamente sugeria, e que passava por tratar da relação das forças de segurança com um bairro e uma população predominantemente negra, em que o tema do racismo, da autoridade, do preconceito, se prestavam a todos os estados de alma. E – claro – as facões, mais ou menos previsíveis, acomodaram-se, ora tomando as dores das ditas forças de segurança, ora tomando as de uma população que se sente discriminada e na «periferia» das prioridades do Estado.

Certamente que assistirão boas razões a ambos os lados. Ninguém, de bom senso, admitirá um país onde medrem territórios sem segurança e sem lei e, no fundo, sem Estado. E ninguém, com o mesmo bom senso, se reverá na discriminação e no preconceito por razões de origem social, étnica, se não mesmo de domicílio.

Não foi nenhum desses sobressaltos, todavia, que me dominou. Ou, pelo menos, não foi daí que me veio o sobressalto. Naquela boutade («pleno século XXI às portas de Lisboa») estava o meu verdadeiro sobressalto. Era chocante – foi este o meu primeiro sentimento – que as imagens de um bairro social insalubre e inacabado, dominado por problemas sociais sensíveis, fosse motivo de surpresa e, no fundo, representasse novidade nas redações e na nossa consciência coletiva. De repente, ninguém conhecia os muitos Bairros da Jamaica da Grande Lisboa, de Setúbal ou do Grande Porto. De repente, ninguém conhecia a tensão por que passam as forças de segurança para garantir a ordem nesses territórios «desconhecidos». E de repente, ninguém conhecia as genuínas e até chocantes razões de queixa dessas populações periféricas.

Neste Portugal «do século XXI» – permitam-me reincidir na boutade – são centenas os bairros sociais e milhares as pessoas que neles habitam (para termos uma ideia, na Área Metropolitana de Lisboa são mais de 8000 fogos e só na cidade do Porto estaremos a falar de 20% da população). E se é verdade que os bairros não são todos iguais, que os problemas que os assolam não merecem a mesma preocupação, e que a urgência social é mais premente no Bairro da Jamaica, no Seixal, ou no Aleixo, no Porto (só para dar dois exemplos, quais ícones mediáticos), não é menos verdade que o sobressalto que nos suscita a notícia dos seus problemas nos devia sobressaltar mais ainda.

É que é nesta distração agora interrompida que habita uma parte (presunçosa) do problema. Andamos muito distraídos. Quase de olhos fechados. E certamente guetizados em bairros e ambientes de privilégio.

É que é nesta distração agora interrompida que habita uma parte (presunçosa) do problema. Andamos muito distraídos. Quase de olhos fechados. E certamente guetizados em bairros e ambientes de privilégio.

Talvez devêssemos olhar para o lado. Perguntar «ao senhor que nos conduz o táxi até ao restaurante», «à menina do supermercado que regista o vinho e o foie para o jantar» ou «à senhora que nos deixou a casa limpa e a roupa passada», como vão as suas vidas, como estão as coisas lá em casa, e – mais importante – se não precisarão de ajuda. E às tantas, até nos percursos que rotineiramente cumprimos (de casa para o trabalho, do trabalho para o concerto, do concerto para o restaurante) perceberíamos que a paisagem se faz dos bairros sociais de que nos falou o senhor do táxi, da degradação de que nos deu conta a menina do supermercado, e da insegurança que tanto inquieta a senhora que nos ajuda lá em casa.

Ainda assim, um país que se surpreende e se sobressalta perante um bairro social problemático (seja na perspectiva das forças de segurança seja na perspectiva das populações que nele habitam) ainda é – animo‑me agora – um país sensível, que enjeita a banalização do que está errado, dedicando «antena», por pouco tempo que seja, a pessoas que dela dependem para que alguma coisa possa, de facto, mudar nas suas vidas.

Não precisaremos de ser todos Jamaica (com ou sem hashtag). Mas poderíamos conhecer melhor a realidade que nos circunda. E, sensíveis ao sobressalto como somos, estou certo que dedicaríamos outra atenção aos bairros sociais, inverteríamos a sua degradação social e cuidaríamos da segurança que justamente reclamam.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.