Os artifícios dos artífices

Antecipa-se a extinção de profissões, uma artificialização da criação. Será assim?

Está instalado o debate – e o medo e a incerteza e a ignorância e a excitação. Tudo à vez, e tudo em separado: a inteligência artificial, que já anda cá há bastante tempo, irrompeu no nosso quotidiano como uma ferramenta ao alcance de todos. Já não é da ordem da ficção, já não é uma coisa de filmes (AI – Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, é de 2001), é obra para nos inquietar.

O ChatGPT é uma dessas ferramentas mais reconhecíveis, mas nestas coisas logo se multiplicam que nem cogumelos, e para todos os gostos: os imediatamente comestíveis, aqueles que exigem domínio, nas mais variadas áreas. Filmes, canções, entradas de enciclopédia, até livros ou notícias, eventualmente remissões e orações, são passíveis de criação pela chamada inteligência artificial.

Perante este novo mundo, fica a dúvida se será admirável, como descrevia Aldous Huxley em 1932. Antecipa-se a extinção de profissões, uma artificialização da criação. Será assim? Um dos mais estimulantes criadores modernos na música atual, o islandês Ólafur Arnalds, que faz uso abundante de maquinaria e sons eletrónicos, mesmo nas suas produções mais ambientais ou sinfónicas (só para facilitar a leitura), enfrenta a questão, numa conversa no final de um concerto registado na paisagem seca de Hafursey, um inselbergue na Islândia.

Para um compositor que afasta a vontade de se aborrecer a fazer o que faz e ficar amarrado a uma só coisa, a inteligência artificial “começa a tornar-se um problema”. “Já se está a tornar um problema, mas é mais um problema para a indústria do que para mim, enquanto artista.”

Para um compositor que afasta a vontade de se aborrecer a fazer o que faz e ficar amarrado a uma só coisa, a inteligência artificial “começa a tornar-se um problema”. “Já se está a tornar um problema, mas é mais um problema para a indústria do que para mim, enquanto artista.”

Ólafur Arnalds explica aquilo que é a diferença entre cópia e o criador. “A arte não é apenas a música, tem de ter um sentido, tem de ter um propósito. Claro que a inteligência artificial pode copiar a minha música dentro de cinco anos, mas a inteligência artificial não está a tentar dizer-te nada, não tem nenhuma mensagem para ti, é só uma cópia, não há nenhuma originalidade, não há qualquer substância nem nenhum sentido — e isso é o que procuramos na música, é uma ligação humana, do que sentimos através das mensagens e das expressões, do que vivemos, como eu a tocar o piano aqui, é uma ligação entre mim e ti. A inteligência artificial é apenas uma cópia disto tudo.”

“A arte não é apenas a música, tem de ter um sentido, tem de ter um propósito. Claro que a inteligência artificial pode copiar a minha música dentro de cinco anos, mas a inteligência artificial não está a tentar dizer-te nada, não tem nenhuma mensagem para ti, é só uma cópia, não há nenhuma originalidade, não há qualquer substância nem nenhum sentido — e isso é o que procuramos na música, é uma ligação humana, do que sentimos através das mensagens e das expressões, do que vivemos, como eu a tocar o piano aqui, é uma ligação entre mim e ti. A inteligência artificial é apenas uma cópia disto tudo.”

(O islandês fala sempre em “AI”, acrónimo para inteligência artificial, sem necessidade de tradução. Até com este artifício, a inteligência artificial parece querer poupar-nos tempo, simplificando…)

Um fã de Nick Cave — e desculpem-me regressar a ele, mas por estes tempos o músico australiano é também um dos mais interessantes a refletir sobre a arte e a criação — propôs-lhe uma letra “à Nick Cave”, feita com recurso ao ChatGPT. Para o frontman dos Bad Seeds, esta letra era “uma porcaria”. Cave notou, nesse texto de 17 de janeiro, que “o ChatGPT está apenas na sua infância, mas talvez esse seja o horror emergente da IA — o de que estará sempre na sua infância, pois terá que ir sempre mais longe e essa direção é sempre para frente, sempre mais rápida. Nunca pode ser revertida ou desacelerada, pois move-nos em direção a um futuro utópico, talvez, ou à nossa destruição total. Quem pode dizer qual?” À sua questão, Nick antecipa a resposta: “A julgar por essa música ‘ao estilo de Nick Cave’, não parece bom.” assume: “O apocalipse está a caminho. Essa música é uma porcaria.”

Mais tarde, em março, numa entrevista à New Yorker, Nick Cave surpreende-se por “haver pessoas inteligentes que acham o ato criativo tão mundano, que pode ser replicado por uma máquina”. “Sinto-me insultado por isso.” Para este artífice da música, os artifícios da criação são outros: “Não há nenhum motivo para se inventar uma tecnologia que possa imitar o ato criativo mais belo e misterioso. Especialmente no que toca a escrever canções. O que há de bom em compor uma canção, é que te diz algo sobre ti que não sabias antes. Não dá para imitar isso.”

Para este artífice da música, os artifícios da criação são outros: “Não há nenhum motivo para se inventar uma tecnologia que possa imitar o ato criativo mais belo e misterioso. Especialmente no que toca a escrever canções. O que há de bom em compor uma canção, é que te diz algo sobre ti que não sabias antes. Não dá para imitar isso.”

Num futuro próximo, já ao virar da esquina, o caminho da criação e da criatividade poderá tropeçar em muita fake art ou em mais fake news. Mas nenhuma inteligência artificial substituirá a visceralidade das composições de Ólafur Arnalds ou Nick Cave, e de tantos e tantos outros artífices. Nada mais óbvio, nada mais humano.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.