O próximo furacão tem de se chamar Justiça

O recente furacão Leslie levou-nos de volta à região centro, devastada pelos incêndios de outubro 2017 e onde pouco ou nada mudou. Que mais furacões serão precisos para reformar um sistema apático, injusto e perverso?

Escrevo passado precisamente um ano – 15 de outubro de 2017 – do fogo que devastou a região centro do país, deixando uma marca de destruição infernal: 48 mortos, feridos, destruição de casas e locais de trabalho e milhares de hectares de floresta ardida, incluindo o imponente Pinhal de Leiria. O furacão Leslie, que a 13 de outubro percorreu a mesma região, tornou ainda mais viva a memória deste dia, também ele potenciado pelos ventos fortes do furacão Ophelia. Passado um ano, pouco ou nada mudou na recuperação destas zonas e nas estratégias de gestão do território. Que mais furacões serão precisos para reformar um sistema escandalosamente apático, injusto e perverso? O próximo furacão tem de se chamar Justiça!

Sou engenheira florestal de formação, o meu primeiro trabalho foi uma bolsa de investigação com o Departamento de Engenharia Florestal do Instituto Superior de Agronomia, focado num ensaio na Mata Nacional de Leiria, mata de referência para todos os engenheiros florestais. O pinhal, impulsionado por vários reis entre os quais se destaca D. Dinis, foi inicialmente mandado plantar no século XIII, com o intuito de travar o avanço e degradação das dunas, bem como proteger a cidade de Leiria e o seu Castelo e os terrenos agrícolas da sua degradação devido às areias transportadas pelo vento. O incêndio consumiu 86% do Pinhal, o equivalente a 9.500 hectares. O trabalho de séculos desapareceu em menos de 24 h, fruto do impacto do desinvestimento na sua manutenção e da redução drástica do corpo de guardas florestais e técnicos que a cuidavam, como foi apontado no Relatório de Avaliação elaborado por uma Comissão Técnica Independente e publicado em março deste ano.

O Relatório é suficientemente claro e forte para provocar uma profunda reforma no sistema de gestão de incêndios florestais. Mas parece não estar ainda a ter os efeitos esperados. Continuamos a jogar o jogo do empurra entre responsabilidades visíveis: dos proprietários que deviam limpar os terrenos à volta das casas, dos responsáveis pelo combate, das empresas de eucaliptos…

Continuamos a jogar o jogo do empurra entre responsabilidades visíveis: dos proprietários que deviam limpar os terrenos à volta das casas, dos responsáveis pelo combate, das empresas de eucaliptos…

Detenho-me no capítulo que analisa os apoios públicos para a floresta e proteção contra incêndios, enquadrados atualmente no PDR 2020 (Programa de Desenvolvimento Rural da União Europeia para 2014-2020). É arrepiante o que se lê. O relatório começa por revelar que os fundos públicos orçados para prevenção de incêndios e outros riscos estão limitados a 2% do programa, uma dotação insignificante em relação à gravidade do problema dos incêndios florestais em Portugal. Mas mais grave ainda, é a forma como estes fundos têm sido distribuídos. A maior parte dos apoios aprovados têm-se concentrado em regiões com baixo risco de incêndio e beneficiárias de apoio privilegiado pelos financiamentos globais da Política Agrícola Comum – PAC (o Alentejo capta mais de metade dos fundos), e só cerca de 1/3 deste apoio foi aplicado em ações diretamente relacionadas com a prevenção dos incêndios.

Os apoios públicos, que à partida deveriam promover a coesão territorial e social, estão a beneficiar sobretudo os já de si beneficiados, afastando cada vez mais os mais frágeis. Para além do menor risco nestas zonas, a maior escala da propriedade facilita a sua gestão e organização e consequentemente a capacidade de aceder aos apoios existentes.

Os apoios públicos, que à partida deveriam promover a coesão territorial e social, estão a beneficiar sobretudo os já de si beneficiados, afastando cada vez mais os mais frágeis. Para além do menor risco nestas zonas, a maior escala da propriedade facilita a sua gestão e organização e consequentemente a capacidade de aceder aos apoios existentes.

Vamos experimentando de perto esta realidade perversa em Ourém, concelho onde nasci, cresci e vivo. Em 2010 demos início à criação de uma Zona de Intervenção Florestal (Seiça-Ourém), figura de planeamento prevista na estratégia nacional para as florestas com o objetivo de discriminar positivamente os territórios de pequena propriedade – minifúndio (em Ourém o tamanho médio das propriedades não chega a 1 hectare, o equivalente a um campo de futebol), promovendo uma gestão conjunta de territórios muito retalhados. Ao fim de 5 anos e de muitas horas a atender e esclarecer mais de 200 pequenos proprietários responsáveis por cerca de 1400 hectares, foi possível a constituição, mas o apoio previsto, ao qual nos candidatámos, foi-nos recusado. Um apoio que tem vindo a ser atribuído indiscriminadamente, aplicando os mesmos critérios a territórios de pequenas e grandes propriedades. Foram também recentemente reprovadas várias candidaturas de limpeza de mato nos concelhos de Ourém, Leiria e Proença-a-Nova apresentadas pela Geoterra, entidade gestora da nossa ZIF, pequena empresa que há mais de 25 anos batalha sem se resignar por esta causa, tão inexplicavelmente difícil…

Não posso por isso deixar de dar voz neste espaço que me é dado, à carta que o Eng. Pedro Cortes (responsável da Geoterra) dirigiu ao Presidente da República neste contexto em junho passado. A carta apela ao seu apoio à causa dos incêndios em Portugal, através de intervenções estratégicas no espaço rural de minifúndio em especial abandono, ação que está ameaçada pelos critérios que o PDR 2020 tem usado para aprovar os poucos projetos que podem ser abrangidos. «Nenhum cidadão urbano ou rural e muito menos nenhum técnico ou cientista, que conheça no terreno a realidade, contestará a urgência imperiosa e a utilidade pública de projetos tão consensuais. Compreendemos a importância dum maior empenhamento na limpeza à volta das casas, (não esquecer que também são as limpezas mais fáceis e mais visíveis) mas isso não resolve a essência do problema nacional: estancar o problema na “fonte” – floresta e territórios minifundiários abandonados transformados em “barris de pólvora” – e não na “foz” – à volta das casas. Cruzando este novo empenhamento com a reprovação destes projetos mais parece que se quer “defender as casas e abandonar o território”, como se isso fosse possível mesmo só tendo em conta a defesa das próprias casas.»

Poderemos juntos, de alguma forma, fazer-lhe eco?

O meu primeiro artigo no Ponto SJ foi precisamente sobre este tema, que na altura associei à necessidade de conversão ecológica lançada pelo Papa Francisco na Encíclica Laudato Si. Hoje, associo este texto a mais um simples e certeiro desafio seu, expresso no número 231 da Alegria do Evangelho: «A realidade é mais importante do que a ideia. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.»

A obra é complexa, a conversão profunda e demorada. O que é mais frágil, invisível, pequeno, é de facto, tendencialmente e transversalmente desprezado, quer como realidade, quer como solução. Mesmo quando essa realidade representa dois terços do nosso país. Que todos os responsáveis se possam inspirar no Rei Lavrador D.Dinis e pedir como o Rei Salomão «um coração cheio de entendimento para governar, para discernir entre o bem e o mal» (1 Reis 3,9), para defender os mais frágeis, para governar sem depender de resultados imediatos, para congregar todos nesta causa em processos participativos assentes nas comunidades, sem deixar ninguém para trás. É difícil? Sem dúvida, mas é o caminho. Quanto mais tarde o entendermos, mais vidas, recursos naturais, sociais, económicos e culturais serão irremediável e inaceitavelmente perdidos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.