Incêndios Florestais: apelo a uma conversão ecológica

Num momento em que as autoridades do nosso país põem um ênfase grande na responsabilidade dos proprietários pela limpeza dos terrenos, é urgente não esquecer que a resposta ao flagelo dos incêndios florestais exige uma conversão ecológica profunda.

“Nesta hora, há também interrogações e sentimentos que não podem deixar de nos angustiar. A começar por um sentimento de acrescida injustiça, porque a tragédia atingiu aqueles portugueses de quem menos se fala, de um país rural, isolado, com populações dispersas, mais idosas, mais difíceis de contactar, de proteger e de salvar”. Passados alguns meses dos terríveis incêndios de 2017, lembro com frequência este parágrafo do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no dramático dia do incêndio de Pedrogão Grande (18.06.2017). Um parágrafo curto que trouxe ao de cima as causas profundas deste desastre que nos deixou a todos perdidos. Acredito que os que perderam a própria vida não morreram em vão e que uma conversão profunda e lenta nas políticas e nos nossos estilos de vida será conseguida. Não podemos perder este horizonte ao enfrentar a questão dos incêndios florestais, articulando medidas de curto prazo com reformas estruturais (na gestão, prevenção, combate, educação, desenvolvimento rural – urbano). Será que esta consciência está já enraizada nas medidas políticas a que vamos assistindo?

Temos vindo a dar conta nos meios de comunicação social de uma reação enérgica, no sentido da limpeza dos terrenos como medida de prevenção dos fogos florestais. “A lei impõe, há mais de dez anos, obrigações muito claras a todos. Nos 50 metros em redor de cada casa e nos 100 metros em redor de cada povoamento não pode haver mato, nem árvores”. Estas são as palavras do primeiro-ministro há dias em Tondela, o qual lembrou que, até 15 de março, “é dever de todos os proprietários procederem a essa limpeza”, data após a qual podem ser autuados (com multas agora mais avultadas) e pode acontecer uma intervenção dos municípios na propriedade privada. Uma medida sem dúvida necessária e orientada para o Bem Comum, que contudo reforça um olhar turvo sobre a realidade. Apesar de se frisar que este trabalho é da responsabilidade de todos, os proprietários aparecem como grandes responsáveis pelo barril de pólvora em que se tornaram muitas regiões do nosso país. Serão? Indo à raiz do problema, este é um peso injusto.

A lei existe há muito, no entanto o problema tem-se vindo a agravar. Sim, é verdade que a floresta portuguesa é maioritariamente privada (84,2% da área total detida por pequenos proprietários de cariz familiar) e que está nas mãos dos proprietários o dever da sua gestão. No entanto, para que tal seja possível, deveria também cumprir-se o dever do Estado de garantir a igualdade de oportunidades e de viabilidade em todos os territórios, o que nas últimas décadas não tem sido respeitado. O abandono rural, grande causa dos incêndios florestais, não aconteceu por falta de responsabilidade e de interesse das populações. Aconteceu pela falta de condições de vida nestes territórios (marcados pelo minifúndio), fruto de políticas públicas que os foram esquecendo.

“Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (Papa Francisco, Encíclica Laudato Si 139). Enfrentar o flagelo dos incêndios florestais, exige uma conversão ecológica profunda da forma como olhamos e gerimos o território e as comunidades que resilientemente ainda aí se mantêm (geradoras de bens e serviços que prestam à sociedade sem receber remuneração). Será equilibrado e eficiente esperar que agora haja uma discriminação positiva dos fundos europeus para o desenvolvimento rural para estas zonas de minifúndio, nas últimas décadas tão marginalizadas, quer para medidas silvícolas preventivas (como sugerido na petição pública em curso, da qual sou signatária), quer para ordenamento do território e reabilitação do tecido socioeconómico, discriminando positivamente iniciativas locais. A recém-criada rede Cuidar da Casa Comum pode ser também uma forma de dar força a uma transformação necessária do nosso olhar e da nossa ação, quer a nível individual, quer coletivo.

A verdadeira transformação não virá de mais ou menos medidas legislativas e punitivas. A mudança de que necessitamos é bem mais funda e só pode partir de uma conversão do nosso olhar e da nossa relação com a terra, com os outros, com a vida. O apelo do Papa Francisco a cuidar da nossa casa comum a partir de uma ecologia integral vem ao encontro deste desafio e ajuda-nos a encontrar caminhos. “Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo é a humanidade que precisa de mudar. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos. Esta consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida. Surge, assim, um grande desafio cultural, espiritual e educativo que implicará longos processos de regeneração” (Papa Francisco, Laudato Si, 202). Tenhamos nós a sabedoria e paciência de não atalhar estes processos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.