O pescador de homens

Surpreendentemente, era um homem sem a predisposição da indiferença, ainda não corrompido pela insídia do silêncio destes sábados de manhã e sem esse instinto da mão e da inteligência reféns do Smartphone.

As manhãs, e em especial as manhãs dos sábados nestes tempos tão condicionados, passam‑me quase despercebidas. Sinto-as mais silenciosas. Sinto-as menos vivas. E chego a senti-las mais insidiosas também.

Era uma dessas manhãs. De um qualquer sábado. Calhou ser no Terreiro do Paço junto ao Tejo. Mas podia ter sido na Praça da Ribeira junto ao Douro ou noutra Praça junto ao Mondego ou ao Sado. Desta vez, contudo, era o Terreiro do Paço que jazia neste novo silêncio. Provavelmente também eu lá estava nessa praça (ou outra que fosse). Ali, conformado e inerte, a olhar. Ou nem sequer a olhar. Simplesmente a passar e a contornar o pequeno ajuntamento de pessoas que assistiam impávidas e inertes. E que, como eu, nada faziam. Ou talvez fizessem. De smartphone em punho, registavam o momento enquanto pensavam nuns dizeres banais, aparentemente sentidos e pretensamente virais (que haviam de acompanhar a partilha do momento nos grupos de whatsapp, no Facebook e no Instagram, para depois percorrerem desenfreadas essas insaciáveis redes até chegarem às CM TV’s).

Sob o foco, um homem de 68 anos (um idoso, como se diz hoje dos homens de 68 anos). Sem nome, sem história conhecida. E sem um último suspiro de resistência, um laivo remoto de instinto, em perfeita sintonia com o silêncio e a indiferença dominantes.

Mas era um homem. Um pobre homem. Que lá teria tido a sua história, os seus sofrimentos, as suas razões. De cujo desespero só ele saberia, mas que provavelmente tomaria por sofrimento extremo, radicado numa depressão profunda que sentia como definitiva ou incurável e fatal. E por isso, num derradeiro impulso, decidira não mais prosseguir. Seria este (ou parecido) o homem idoso. De cuja «liberdade» dependera aquela outorga, aquela vida a flutuar indiferente no Tejo (ou no Douro, ou no Mondego, ou no Sado). Literalmente, em suicídio assistido. Pois se não era, podia ter sido.

Contra todas as probabilidades (e indiferenças e inércias e sei lá mais o quê), passou por ali um outro homem. De mão dada com o filho pequeno de 7 anos, caminhava naquele silêncio de sábado de manhã junto ao Tejo. Surpreendentemente, era um homem sem a predisposição da indiferença, ainda não corrompido pela insídia do silêncio destes sábados de manhã e sem esse instinto da mão e da inteligência reféns do Smartphone. Como é óbvio, pensou ele, havia que resgatar aquele homem idoso do destino que a sua «liberdade» traçara. Havia que o ir buscar ao rio, trazer para a vida e salvá-lo! E assim foi, e assim fez. Perante o espanto e a indiferença e o registo de todos os demais que, preparados para o registo da desgraça, registaram, afinal, a coragem, o humanismo e a vida.

«Uma vida é sempre uma vida. Não pensei duas vezes. Voltaria a fazer as vezes que fosse preciso», assim se justificou o José Brito, que todos ficámos a conhecer como o Zé Luís. O nome e o homem por trás do salvamento.

É incrível como o Zé Luís nos convoca para o óbvio (uma vida é sempre uma vida). Mas naquele silêncio e inércia que só ele interrompeu estávamos tantos de nós. E, de repente, esse «uma vida é sempre uma vida» não é nada óbvio e sucumbe à insídia dos «silêncios dos sábados de manhã». Qualquer duvidoso apelo de liberdade, qualquer invocação de sofrimento extremo, qualquer ideia de fatalidade, nos desviam desse óbvio. No Terreiro do Paço ou no Parlamento. No Código Penal ou, pior, no coração de cada um de nós.

Mas há esperança. Porque ninguém (ninguém!) ficou indiferente ao nosso Zé Luís. Dele, todos (de todos os quadrantes), disseram o óbvio. O herói que nos legou um «bom exemplo de solidariedade humana e de coragem», nas palavras do próprio Presidente da República.

Neste ano novo de 2021, em que trazemos do ano velho de 2020 muitas preocupações e discussões, muitos silêncios e insídias dos sábados de manhã, eu inspiro-me e proponho-me tal qual o Zé Luís.

Que não pensemos duas vezes quando em causa está uma vida. Que no Terreiro do Paço ou no Parlamento, no Código Penal ou no coração de cada um de nós, tenhamos a coragem de resgatar qualquer vida. Que não haja sofrimento extremo, lesão definitiva ou incurável e fatal que nos gere a indiferença.

E assim, de mão dada com os nossos filhos ou netos pequenos, tiremos a roupa, larguemos o que for preciso e atiremo-nos ao rio. No fundo, que cada um, nas suas circunstâncias, no lugar que ocupa e com o poder de que dispõe, saiba ser como o Zé Luís. Um pescador de homens.

Um Bom Ano de 2021 para todos.

Fotografia de Nana Tava – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.