O ovo e a galinha

O sobre-endividamento crónico da economia portuguesa evidencia um círculo vicioso entre fraca produtividade e défice de capital. Resolver problemas difíceis como este – tipo ‘ovo e galinha’ – requer propostas e debates bem fundamentados.

Todos os anos, por esta altura, começo a ensinar bases de Macroeconomia a estudantes da licenciatura. Uma das tarefas mais cruciais (e interessantes) é mostrar que, quando se olha para a economia como um todo, muitas das questões são do tipo ‘ovo  e galinha’:  interligações entre variáveis situadas em fases diferentes do circuito económico e que se determinam reciprocamente sem que seja inequívoco estabelecer uma causa última.

O caso de Portugal, com uma economia cheia de desequilíbrios crónicos, é fértil em exemplos. Um deles é o seguinte: a economia portuguesa (famílias, empresas e estado) está cronicamente sobre-endividada; o excesso de dívida significa que há falta de capital (financeiro e, logo, produtivo); o défice de capital resulta de uma fraca poupança; a taxa de poupança é baixa porque o nível de vida (rendimento) é baixo; o rendimento é baixo porque as empresas são pouco produtivas; a fraca produtividade decorre, entre outras causas, da falta de capital; que leva a sobre-endividamento;…

Aqui está um dos mais dramáticos círculos viciosos da economia portuguesa – central para perceber o atraso crónico do País e como se poderá ultrapassar esse atraso.

Grosso modo, pode pensar-se em soluções que atuem em três grandes fases deste círculo vicioso: (i) aumento do capital; (ii) aumento da taxa de poupança; (iii) aumento da produtividade.

Quanto a (i), alguns acreditam que injeções externas de capital permitiriam melhorar a produtividade e, a prazo, resolver o problema. Para isso, poder-se-ia apostar na atração de investimento estrangeiro; e poder-se-ia, ainda, captar fundos públicos externos de apoio ao investimento. Portugal já usou ambas as estratégias, e vai entrar num novo período de afluxo de apoios originários da União Europeia. O que a experiência nos diz, contudo, é que se os incentivos não estiverem alinhados para que os fundos sejam aplicados em atividades eficientes e produtivas, estas injeções não são reprodutivas, e rapidamente se esgotam. O que remete para o nosso próprio papel na promoção dos incentivos corretos: transparência e rigor na afetação dos recursos, aumento da concorrência para que os recursos sejam afetos a atividades eficientes. Eu penso que é tanto menos provável que se concretizem as mudanças estruturais que permitiriam usar eficientemente fundos externos quanto menos custoso é o acesso aos fundos.

Quanto a (iii), parece-me que poucos acreditam – e com razão – que se possa aumentar a produtividade rápida e substancialmente sem previamente resolver o problema do défice de capital. Boas políticas de educação e formação profissional são importantíssimas, mas muito difíceis de desenhar, exigentes em recursos (à partida escassos – é o problema) e, sobretudo, só dão resultados a longo prazo. Melhorias estruturais nos sistemas de saúde e de justiça e, em geral, em muitos aspetos da vida social e económica que dependem do estado, ajudam muito. Contudo, sendo importantes para melhorar o ambiente em que famílias e empresas se movem, não garantem que a produtividade cresça rápida e significativamente.

Há muito mais que deveríamos saber sobre o impacto desta reforma (como de todas as propostas) e que só não sabemos porque se insiste em discutir as propostas de política económica na base do palpite, sem fundamento técnico profundo e rigoroso, e em função dos supostos interesses de classe

Na minha opinião, (ii) é o essencial. Poucos acreditam – e com razão – que se consiga aumentar a taxa de poupança sem que antes se aumente o nível de vida da população. Na economia aberta em que vivemos, já não é possível aumentar a taxa de poupança limitando o nível de consumo da população, por exemplo através de um protecionismo ao estilo do Estado Novo. Poder-se-ia estimular a poupança pela melhoria do regime fiscal que lhe é aplicável, e pela oferta de instrumentos de aplicação de poupança em dívida pública mais atrativos. Contudo, o impacto de mecanismos deste tipo seria sempre muito limitado, se nada de mais estrutural fosse feito.

Recentemente, foi apresentada uma proposta de alteração do imposto sobre o rendimento singular (IRS) que pode contribuir para resolver o círculo vicioso entre produtividade, poupança e capital: uma taxa única de IRS de 15% (eventualmente dois escalões, numa versão mitigada ou inicial), isenção universal por 650 euros de rendimento mensal bruto e deduções de 200 euros por filho.

A controvérsia tem sido enorme. Muitos assinalam que esse regime seria bem menos progressivo do que o atual (alguns, erradamente, afirmaram que não seria progressivo de todo, esquecendo o papel da isenção de base) e isso induziria maior desigualdade na distribuição do rendimento. Muitos notam que a perda de receita fiscal seria enorme e implicaria a diminuição dos serviços e apoios sociais prestados pelo estado.

Os proponentes notam que essa reforma reduziria os impostos em todos os atuais escalões de rendimento e não apenas nos mais elevados; que o fato de resultar em aumento de rendimento disponível nos mais ricos não deveria ser um problema, pois o relevante é reduzir a pobreza e não a riqueza; e apontam que a desigualdade aumentou imenso nas últimas décadas apesar do aumento da carga e da progressividade fiscal – carga essa que, limitando o crescimento da economia, faz com que tenha sido cada vez mais desigual a distribuição de um rendimento que não cresce há 20 anos. Argumentam ainda que o Estado social não seria ameaçado por esta medida, pois a redução de impostos seria acompanhada de uma redução de despesas públicas desnecessárias. E argumentam que o crescimento da economia possibilitado por essa reforma – evidente em países da Europa central que adotaram regimes fiscais comparáveis – permitiria recuperar receitas fiscais a prazo, pelo aumento da base de incidência do imposto e pelo menor incentivo à fraude fiscal. Garantindo mais emprego e um maior nível de vida, em geral, no país.

Há muito mais que deveríamos saber sobre o impacto desta reforma (como de todas as propostas) e que só não sabemos porque se insiste em discutir as propostas de política económica na base do palpite, sem fundamento técnico profundo e rigoroso, e em função dos supostos interesses de classe. Alguns exemplos:

Alguém sabe qual a propensão marginal ao consumo (ou seja, a variação do consumo por cada euro adicional de rendimento disponível) dos vários escalões de rendimento? Diz-nos a intuição e a teoria que é bem menor nos escalões mais altos. Se assim for, esta reforma faria aumentar a taxa de poupança. E contribuiria para resolver o problema de ‘ovo e galinha’ poupança-capital-produtividade-poupança.

As escolhas políticas são opções subjetivas consistentes com a visão de cada um sobre a sociedade em que gostaria de viver. Mas têm necessariamente uma dimensão técnica: quer a determinação das opções possíveis, quer a análise das consequências de cada uma das alternativas, devem ser baseadas em estudos bem feitos e bem comunicados.

Alguém sabe qual a propensão marginal à importação (ou seja, a variação das importações por cada euro adicional de rendimento disponível) dos vários escalões de rendimento? Alguém sabe qual o efeito previsível desta reforma sobre o crescimento e o nível de produto nos sucessivos horizontes de médio e longo prazo?

Se as estimativas forem as que eu antecipo, esta reforma aumentaria de fato o nível de vida em Portugal, com uma pressão relativamente mitigada sobre as importações – o que significaria uma menor necessidade de recurso a poupança externa – e um maior nível de poupança nacional. Com mais poupança, formar-se-ia mais capital e Portugal seria muito mais produtivo: o nível de vida dos portugueses aumentaria.

As escolhas políticas são opções subjetivas consistentes com a visão de cada um sobre a sociedade em que gostaria de viver. Mas têm necessariamente uma dimensão técnica: quer a determinação das opções possíveis, quer a análise das consequências de cada uma das alternativas, devem ser baseadas em estudos bem feitos e bem comunicados. Nunca houve em Portugal tanta capacidade de investigação sobre Economia. É pena que o debate político continue a ignorar a necessidade de fundamentar e debater tecnicamente as opções propostas.

Fotografia: Matt McKenna – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.