O marxismo não é para católicos

Qualquer ideologia assente na inevitabilidade do conflito arrasta-nos para um perpetuar do conflito.

Há conversas que perduram no tempo. A que vos proponho hoje é, olhando a história da Igreja, relativamente recente, mas é tão antiga como a ideologia que a despoletou. A tensão entre o catolicismo e o marxismo, o corpo de ideias avançado por Marx e Engels, permanece atual, pois apesar da sua aparente falência no final do século XX, o marxismo continua presente e influente nos planos político e social contemporâneos, ainda que em diferentes estados de vitalidade e sujeito a copiosas reinterpretações.

Não me lançarei numa análise a todas as suas particularidades nem às várias versões que este pensamento conheceu. Nem sequer me debruçarei sobre dois temas que fazem com que seja difícil defender, consistentemente, que se seja católico e marxista: a visão de Deus, para quem Marx, seguindo Feuerbach, não passa de um ideal e de uma projeção humana – negando a Revelação –, acrescentando que a religião é um instrumento de dominação; ou a propriedade privada, considerada um roubo para o marxismo, quando para a Doutrina Social da Igreja é intrínseca à dignidade humana e um direito natural.

Admito, relutantemente, que sendo difícil de defender, um católico pode afirmar-se marxista rejeitando estas duas visões, pois é legítimo arguir que, atualmente, só as franjas mais radicais dos movimentos marxistas permanecem inamovíveis nestes temas. Ainda assim, não é coincidência a aversão à religião – principalmente ao catolicismo –, bem como o desrespeito pela propriedade privada, nos discursos de inspiração marxista. As ideias têm consequências, e a água de uma charca, por muito que se pareça com um aprazível lago, provocará e disseminará doenças.

Deste conflito emergirá, inevitavelmente, um vencedor. E a esse vencedor cabem os despojos de guerra: o domínio do aparelho do Estado.

Contudo, o que me move a escrever estas linhas é a mundivisão marxista de quem somos e da nossa história. A lente de Marx oferece-nos uma história da humanidade que não é outra coisa que conflito, numa divisão primeva entre opressores e oprimidos, sem espaço para matizes. Em cada situação há um opressor e um oprimido, e o opressor é um agente a eliminar.

O marxismo é uma dialética do conflito. Inspirado por Hegel, que via na tensão entre a família e a sociedade a estrutura da dialética política, tensão essa que poderia ser dirimida pelo Estado, Marx apropria-se deste mecanismo e terraplana-o: o que temos agora não são dois agentes em busca do bem comum e abertos à intervenção de um terceiro, mas opressores e oprimidos em conflito aberto. Deste conflito emergirá, inevitavelmente, um vencedor. E a esse vencedor cabem os despojos de guerra: o domínio do aparelho do Estado.

Esta opção fundante faz do marxismo uma ideologia cega à complexidade da realidade. Ao resumir a nossa história comum à opressão, deixa de reconhecer a bondade e o altruísmo, e a pessoa passa a ser um animal a ser controlado. Por força disto, e sem negar a bondade da causa original – a legítima luta pelos direitos dos trabalhadores –, inevitável e sistematicamente, em todas as sociedades em que as ideias marxistas ou os seus derivados vingaram, encontramo-nos com o mesmo resultado: estados totalitários, assentes na demonização do outro.

Sempre que a humanidade, pelos seus próprios meios, tentou erigir o paraíso na Terra, deu espaço a poderosos, flamejantes e temíveis Infernos. E a Igreja Católica é bem consciente disso, pois várias foram as vezes em que nos deixámos seduzir por esta tentação básica. Mas ao contrário do marxismo, esta demonização do outro é, para um católico, uma deturpação da sua crença, pois o que há a odiar, como afirmou São Tomás de Aquino, é o pecado, e não o pecador. E este deverá ser julgado pelas suas ações, e não pela sua classe. O pecador era, é, e será sempre, alguém a salvar.

A obsessão marxista por catalogar o outro e dividir a sociedade entre puros e impuros tem encontrado expressão contemporânea nas políticas de identidade. Diante do fracasso da luta de classes, o marxismo encontrou um lugar fecundo na luta contra a discriminação racial, de género ou de orientação sexual. Onde este consegue impor-se como fundamento filosófico destas legítimas lutas emancipatórias, fomenta e prolonga o conflito, e abre as portas à perseguição, da qual a “cancel culture” é um mais que expectável rebento.

A obsessão marxista por catalogar o outro e dividir a sociedade entre puros e impuros tem encontrado expressão contemporânea nas políticas de identidade

Talvez pensem que estou a exagerar. Mas que diferença abismal, no movimento dos direitos civis dos anos 60 nos EUA, entre os protagonistas cristãos, como Martin Luther King, e os seus contemporâneos “Black Panthers”, de inspiração marxista. Mais recentemente, vejam como as palavras enformadas pelo cristianismo de Nelson Mandela ou do bispo anglicano Desmond Tutu, pessoas que viveram a segregação racial, contrastam com o discurso afluente nas sociedades ocidentais que faz de cada cidadão branco um racista, e das figuras de autoridade, opressores. É só verificar, entre nós, as intervenções de Joacine Katar Moreira e de Mamadou Ba.

Esta tendência para a demonização do outro, atualmente aceite sem sobressalto social na praça pública, é uma reinterpretação atualizada da visão marxista. E em lugar de uma sociedade mais justa, tendo a virtude de chamar a nossa atenção para a opressão, está a guiar-nos por caminhos que colocam a dignidade da pessoa humana em causa.

O género, a cor ou a orientação sexual de alguém diz-nos muito pouco sobre quem a pessoa é. Esta “política de aparências” é, em si mesma, discriminatória, e não tem qualquer profundidade. O que deve relevar, sempre e em qualquer situação, são as crenças e ações de cada um. Os outros elementos são constitutivos de quem a pessoa é e têm um peso na sua biografia e itinerário pessoal, sem dúvida. E devemos unir-nos na luta contra toda a discriminação injusta. Todavia, unidos também no pressuposto de que há valores universais, dos quais todos podem comungar, valores como a verdade, a bondade e a justiça, e que a origem social, a cor da pele, as pessoas por quem fulano se sente atraído, e o género que sicrano é, em si mesmas, são características, não são valores.

Qualquer ideologia assente na inevitabilidade do conflito arrasta-nos para um perpetuar do conflito. Se até os católicos, cujo centro da sua fé se encontra num Pai de todos, de um Pai que se revela no seu Filho, que a todos ama e que todos salva, têm grandes dificuldades em não cair na tentação da divisão entre puros e impuros, que dizer de uma filosofia que faz desta divisão o seu ponto de partida?

Há um longo caminho a percorrer no nosso compromisso com a justiça, e no nosso lavar de olhos que nos permita ver além dos preconceitos. Mas a oportunidade para construir um mundo mais justo não reside numa dialética de conflito, mas no abraçar da revelação cristã: todos somos filhos de um mesmo Deus; todos somos seres em caminho, um caminho feito de erros e acertos, em que a graça, agindo sobre a natureza, pode espoletar o milagre da salvação, de uma salvação a ser vivida por todos. Esta é a nossa grande esperança. Esta é a promessa de Deus para nós. Esta é a nossa vocação.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.