O imenso mistério e a delicadeza das travessias

Da complexa dimensão do perdão ao dia a dia das triviais convulsões relacionais, não há percursos fáceis, nem obstáculos que, pela força da convicção, não tenham uma “passagem” por descobrir em cada deserto a atravessar.

Falta-nos a memória de outras crises e de pedagógicas resiliências. O tempo veloz precipita-nos no imediato, sem rasto. “Esquecer ou reescrever o passado é condição para a repetição dos mesmos erros, dos mesmos sofrimentos e das mesmas dores” (1). O hoje de alguém é um ponto de chegada de todas as experiências de vida que o(a) precederam. É a capacidade de ser ponto de partida que faz a diferença. Também para quem diz ter fé, sobretudo para quem diz ter fé, o passado tem de ser “mais do que um ontem cheio de certezas”.

Vem isto a propósito da Páscoa. A vivência de ciclos de reparação ou travessia em contexto religioso ou espiritual não tem apenas os contornos de uma tradição fixada ou de um exercício de retorno. Pelo contrário. Projeta toda a história passada num futuro que começa hoje, imprevisível. Atravessar é isso mesmo, ir, sempre que necessário, para um outro lado. E peregrinar.

A vivência de ciclos de reparação ou travessia em contexto religioso ou espiritual não tem apenas os contornos de uma tradição fixada ou de um exercício de retorno. Pelo contrário. Projeta toda a história passada num futuro que começa hoje, imprevisível.

Não podemos entender o pulsar da fé sem este perpétuo movimento entre o insondável, o imprevisível e o expectável. O tempo que passa permite ligar o essencial disperso, mas o homem sabe que não o domina.

Na interpretação cristã, as narrativas bíblicas não fecham, abrem um caminho novo, orientado por uma ética de ser e de estar que constrói um novo “reino” de existência e convivência, sem metas ou balizas. O resto é decorrência e desconhecido.

O que sobra do que ficou da tradição oral, escrita e, sobretudo, comunitária, é para se viver no campo do discernimento, à luz dessa ética de relação, na interpretação dos sinais de cada momento da vida social e no concreto de cada vida, usufruindo de um impulso não visível – chamemos-lhe… fé –, que permite vislumbrar o que, pelos sentidos, só é visível como consequência ou efeito.

A Páscoa – na metáfora da “passagem” judaica ou da vida nova pela ressurreição cristã – é o desenho narrativo de uma esperança que vence o desânimo, no limiar da desistência. Estranho paradoxo este, o de um “Deus” que expõe as “feridas” para revelar “a união do humano e do divino” (2), para denunciar o abismo entre a possibilidade de confiar, ou não,
construindo relações redimidas ou insistindo no sofrimento e na morte.

A Páscoa – na metáfora da “passagem” judaica ou da vida nova pela ressurreição cristã – é o desenho narrativo de uma esperança que vence o desânimo, no limiar da desistência.

A mais básica teologia cristã coloca-nos diante da evidência: o inexplicável questiona a soberba, a ignorância, o preconceito e… a incoerência. Aquela figura, nestes dias representada nos templos, teatralizada nas ruas da Quaresma, do Tríduo Pascal e do Compasso, está, em carne e osso, ao virar da esquina, em cada excluído pela indiferença dos estabelecidos que se limitam a ver a banda passar.

E depois, há a inquietação do perdão, palavra gasta, transformada em peça de arqueologia das narrativas do sagrado. Conta-se que, afinal, é a fragilidade que salva, a fragilidade da entrega.

Um imenso mistério que… se formos a ver… não é assim tão enigmático. Da complexa dimensão do perdão ao dia a dia das triviais convulsões relacionais, não há percursos fáceis, nem obstáculos que, pela força da convicção, não tenham uma “passagem” por descobrir em cada deserto a atravessar.

Nota: Para homens e mulheres de boa vontade, esta Semana Santa tem uma inesperada motivação. “Não se esqueçam de rezar por mim”. Com e por Francisco, a súplica ecoa para lá dos limites da religião, porque há gente que consegue juntar-se a outra gente para que “cada vez mais gente seja gente”, como diria frei Fernando Ventura.

(1) Todos Nós Somos Sendo, p.75. Fernando Ventura e Joaquim Franco. Contraponto.
(2) O meu Deus é um Deus ferido, p.37. Tomas Halik, Paulinas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.