“É oficial, o meu irmão nunca vai andar nem nunca vai ser um ‘menino normal’ como os outros. Hoje é, provavelmente, o dia mais triste da minha vida. Chegou a casa a cadeira de rodas que confirma o maior medo da minha vida: o meu irmão não vai andar. Hoje é o primeiro de muitos dias desafiantes que se avizinham para todos nós, irmãos, pais e família.”
Quinze anos mais tarde, depois deste fatídico dia, quando o João tinha 5 e eu 15, muito mudou. No seu desenvolvimento, e por conta da doença que tem, ao invés de conseguir pôr-se de pé agarrado, como ainda conseguia fazer anteriormente, hoje não move sequer as pernas, nem escreve, nem lê, pouco vê, precisa de ajuda para todas as tarefas (ir à casa-de-banho, comer, lavar os dentes), e as suas conversas infantis são praticamente as mesmas que tinha desde então. O seu desenvolvimento físico regrediu e o mental pouco se desenvolveu.
A realidade deste desafio, que nos foi apresentado a todos, desde ao próprio João, até à família, pouco mudou. Mas houve algo que se alterou, e é sobre isso que me quero debruçar: a percepção da realidade, a forma como olhamos para ela e como a mesma pode alterar o nosso caminho para a felicidade.
Lembro-me, ainda que tenha sido há 20 anos, de os meus pais nos juntarem aos 3 (a mim e aos meus irmãos) para nos dar a boa-nova de que teríamos mais um irmão. Tratámos do João com uma alegria imensa, nunca pensando que o continuaríamos a fazer até sempre desta forma tão protetora e cuidadosa. Passado uns anos de o nosso irmão nascer, percebemos que não ia andar como nós, que não ia aprender na escola como nós e que a sua vida seria bem diferente da nossa. Mas quisemos sempre dar-lhe a vida mais parecida e feliz que pudemos, tal como os pais, avós e família nos ensinaram e deram também. E hoje o João está crescido, com 20 anos. Cresceu conosco e nós com ele.
Mentiria se dissesse que a minha vida foi sempre feliz e positiva, porque não foi. Privei-me do direito à felicidade por não saber lidar com a infelicidade que sentia por não entender o porquê de Deus nos ter dado este ‘fardo’, ao João e a nós. A adolescência foi provavelmente a fase mais complicada porque, para além das hormonas aos saltos, não aceitava o facto de ter um irmão tão diferente que não ia poder ter as mesmas oportunidades que eu, privando-se delas e privando-me a mim de tantas outras, pois tinha de dar um apoio muitíssimo maior em casa do que os meus amigos davam (ou, pelo menos, que eu achava que davam). E pior, sentia-me culpada por pensar em mim e nas minhas privações quando as do João eram (e são) muitíssimo maiores.
Mentiria se dissesse que a minha vida foi sempre feliz e positiva, porque não foi. Privei-me do direito à felicidade por não saber lidar com a infelicidade que sentia por não entender o porquê de Deus nos ter dado este ‘fardo’, ao João e a nós.
A espiral de infelicidade não tinha fim e eu não fazia ideia de como sair dela. O escutismo foi o meu porto de abrigo, o lugar seguro onde sempre pude ser eu, onde comecei a olhar para o mundo com uma visão diferente e, muito provavelmente, a escola da vida que me “salvou”. Nos escuteiros aprendi a ver oportunidades onde muitas pessoas viam problemas, a ver soluções onde tantas outras identificavam desafios e, sobretudo, a dar valor e a encontrar a felicidade nas coisas mais pequenas.
Com esta experiência, e depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que tinha dois caminhos para a mesma realidade que me era apresentada: o da felicidade ou o da infelicidade. Graças a Deus escolhi o da felicidade. Escolhi o copo meio cheio, escolhi percepcionar a realidade de uma forma diferente de como tinha feito até então.
Com esta experiência, e depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que tinha dois caminhos para a mesma realidade que me era apresentada: o da felicidade ou o da infelicidade. Graças a Deus escolhi o da felicidade. Escolhi o copo meio cheio, escolhi percepcionar a realidade de uma forma diferente de como tinha feito até então.
Agradeço sobretudo aos meus pais e chefes de escuteiros por me terem feito ver a realidade de forma diferente. Hoje consigo perceber e guiar-me pelas palavras que a nossa Mãe sempre nos transmitiu: Deus deu as cruzes mais pesadas a quem as pode suportar, e foi por isso que confiou em nós para carregar a do João. A partir daí, percebi que o João não é a sua cadeira, nem tão pouco a sua doença. O João Maria tem uma doença, mas não é a sua doença. É um ser humano amoroso que não consegue ver ninguém triste, que quer ser amigo de todos e que não dispensa uma boa gargalhada, fazendo rir todos os que o rodeiam. E é fruto do amor que todos lhe deram, especialmente os nossos pais, uns verdadeiros heróis como não conheço iguais, que fazem tudo para que cresça o mais saudável e feliz possível, que garantem todas as terapias e logísticas para que não passe um segundo sozinho, pois as suas necessidades são bem maiores do que alguém que não conhece esta realidade possa pensar.
É um ser humano amoroso que não consegue ver ninguém triste, que quer ser amigo de todos e que não dispensa uma boa gargalhada, fazendo rir todos os que o rodeiam. E é fruto do amor que todos lhe deram, especialmente os nossos pais, uns verdadeiros heróis como não conheço iguais, que fazem tudo para que cresça o mais saudável e feliz possível, que garantem todas as terapias e logísticas para que não passe um segundo sozinho, pois as suas necessidades são bem maiores do que alguém que não conhece esta realidade possa pensar.
Dando Deus as suas maiores cruzes aos seus maiores guerreiros, esta foi a luta que nos foi confiada, e hoje estou grata pela confiança, na linha da frente da batalha. Muitos outros guerreiros sofrem hoje por não terem ainda percebido que foram escolhidos para esta ou outras batalhas. E esses precisam, como eu precisei também, de desafiar a infelicidade e pô-la à prova, pois todos nós temos o direito de encontrar o caminho para a nossa felicidade, aceitando a realidade e percecionando-a da forma mais positiva possível, alterando o que pode ser alterado e aceitando com um sorriso o que não depende de nós alterar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.