Não, não é proibido sofrer!

Em duas recentes decisões, os tribunais foram chamados a avaliar a existência de um "direito a não sofrer". Ao negar a petição, os juízes põem o dedo numa ferida aberta: qual o lugar do sofrimento no nosso espaço cultural?

Entre as tantas notícias que a comunicação social dedica às peripécias e decisões dos tribunais, chamaram a minha atenção, na última semana, dois casos em que no centro da disputa judicial estava o sofrimento, ligado ao valor da existência humana. Em ambas as decisões, os juízes optaram por negar a petição que invocava um “direito a não sofrer”: num dos casos para defender a vida, no outro para determinar a morte.

Primeiro caso: pena de morte. No passado dia 1 de abril, um Supremo Tribunal Federal norte-americano muito dividido (5 votos contra 4) rejeitou o recurso de Russell Bucklew, condenado à morte em 1996 por homicídio. O pedido versava, não sobre a própria execução, mas sobre o método a utilizar. Com a injeção letal prevista, Bucklew corre o risco de uma morte muito dolorosa, por causa de uma grave doença dos vasos sanguíneos. Por esta razão, solicitou aos tribunais a possibilidade da sentença ser cumprida através de gás letal. No acórdão assinado pelo juiz Neil Gorsuch, a negação do pedido aparece justificada pela inexistência de um direito a morrer de forma indolor. No texto da sentença, o juiz conservador defende que «a Oitava Emenda (texto constitucional que proíbe penas cruéis) não garante a um prisioneiro uma morte sem dor – coisa que, naturalmente, não está garantida para muitas pessoas, incluindo a maior parte das vítimas de crimes capitais».

Segundo caso: fim de vida. No dia 2 de abril foi conhecida uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça alemão, com a qual foi negada a Heinz Sening uma indemnização exigida aos médicos da casa de saúde na qual o pai estivera internado durante vários anos e viria a morrer, em 2011. Heinrich Sening esteve nos últimos cinco anos da sua vida submetido a alimentação artificial, situação que o filho considera um prolongamento desnecessário da vida, em condições de grande sofrimento, pelo qual pretende um ressarcimento (por danos morais e pelas despesas do internamento). O tribunal considerou, no entanto, que não sendo a alimentação artificial a causa do sofrimento, não se dão os pressupostos para uma indemnização. Não podem, por isso, os médicos ser responsabilizados por ter prolongado a vida de Sening. De facto, nas palavras dos juízes alemães, «a vida – mesmo quando a sobrevivência seja marcada pelo sofrimento – não pode, de forma alguma, ser entendida como um dano».

Estes dois casos suscitam sentimentos contrastantes e um certo desconforto: percebo como uma mesma problemática cria ressonâncias diversas, consoante estejamos perante a pena de morte ou a fronteira entre eutanásia e obstinação terapêutica. Ao pôr lado a lado estes dois casos, não pretendo sugerir nenhum tipo de generalização, mas acolher o desafio suscitado pelo modo como ambos os tribunais enfrentaram uma questão fundamental e premente: qual o lugar do sofrimento no nosso espaço cultural?

Ao pôr lado a lado estes dois casos, não pretendo sugerir nenhum tipo de generalização, mas acolher o desafio suscitado pelo modo como ambos os tribunais enfrentaram uma questão fundamental e premente: qual o lugar do sofrimento no nosso espaço cultural?

O aspeto que chama a atenção, em ambas as histórias, é a forma como a questão do sofrimento parece absolutizada, ao ponto de colocar a própria existência em segundo lugar. Esta exaltação do sofrimento, tido como mal radical, constitui o sinal de um hedonismo enraizado, em que a elevação do prazer a objetivo da vida faz perder de vista a riqueza e complexidade da existência. A invocação de um direito fundamental ao não-sofrimento (com prioridade sobre o direito à vida!) aponta para um vazio de sentido desolador: o sofrimento deixa de ser encarado como um obstáculo a superar para se tornar na própria meta da existência, colocada em forma negativa.

Por outro lado, a elevação da ausência de sofrimento a fim e parâmetro único da vida humana pressupõe uma ideia de indivíduo enquanto realidade isolada, como se se tratasse de um “sistema fechado”, totalmente independente. Chama a atenção, nos dois casos apresentados, a ausência de referências à dimensão comunitária e social implicada: as pessoas acabam por ser reduzidas ao seu sofrimento. Paradoxalmente, a focalização no sofrimento tende a isolar a pessoa, quando só no contexto de uma teia de relações, este pode ser integrado e lhe pode ser dado um sentido.

As duas sentenças, desmascarando a dinâmica perversa da invocação de um direito ao não-sofrimento, obrigam a um saudável realismo: a dor faz parte da existência humana! Pretender da justiça a tutela de uma pretensão em sentido contrário é desistir do valor da vida que não é apenas a condição para todos os direitos, mas sobretudo o seu fim último. Ainda que o sofrimento não tenha sentido em si mesmo, é possível vivê-lo de forma positiva, no seio de relações significativas e integrando-o num “relato maior”. Por outras palavras, é urgente, enquanto sociedade, desviar a atenção do “porquê?” e concentrar-nos no “para quê?”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.