Zé Maria e a beleza de gerar diálogos

Honrar o legado evangelicamente pobre, humilde e servidor do Zé Maria passa por nos exercitarmos no ofício do diálogo, sabendo, como ele, construir e habitar aqueles lugares temperados de encontro com a diferença, sem perder o enraizamento

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O P. José Maria Brito, SJ deixou-nos cedo. Dolorosamente cedo. Servem estas linhas – longas, mas sentidas – para refletir sobre o seu legado, nesta data que é tão central para o nosso país, como certamente seria para ele.

Tendo nascido já em Democracia, viveu intensamente as suas peripécias e deixou-nos um exemplo inspirador de como habitar o espaço público português nos próximos 50 anos, como jesuítas, como cristãos, ou como cidadãos de boa vontade.

O Zé Maria, entre muitas outras coisas que outros artigos poderão explorar, enquanto estudante portuense de Comunicação Social, foi um entusiasta da democracia e da vida política, tendo até exercido militância partidariamente. Se, para alguns, a vocação passa pelo serviço público através da política, o Zé Maria veio a encontrar na Companhia de Jesus a forma de servir a Deus e à comunidade.

Por razões óbvias, a atividade partidária deixou de fazer parte do seu horizonte, mas nem por isso a sua vocação religiosa e sacerdotal o afastou da política, entendida no sentido de profundo interesse e acérrima defesa da comunidade e dos cidadãos. Foi um defensor dos direitos humanos, um promotor do diálogo franco e um edificador do Bem Comum. Tudo isto através da reflexão aprofundada, da participação cívica, da denúncia das desigualdades e da Promoção da Justiça, que, segundo o modo de proceder da Companhia, só enraizada no Serviço da Fé pode dar fruto que permanece. Como poderia o Zé Maria apontar o Reino se não o começasse a construir desde já e desde cá?

Num dos múltiplos artigos que escreveu no Ponto SJ, projeto pioneiro da Companhia de Jesus em Portugal que fundou e que já conta 6 anos, o Zé Maria deixou-nos coordenadas preciosas e que nesta hora vale a pena recordar. Não só para contemplar a sua vida transbordante de bênçãos para tantos, mas também para o duplo desafio de refletirmos sobre o caminho do país nos últimos 50 anos, sem deixar de perspetivar o que ainda nos espera.

Em “Uma bandeira que vale mais do que a fama”, publicado em 2019, no Dia de Santo Inácio de Loyola, o P. José Maria comentava o alarme social provocado pelo caso Team Strada. Com grande perspicácia, apontava naquele fenómeno as três carências essenciais dos jovens que, no fundo, são as da humanidade:

“Afeto, sentido, segurança. São sedes humanas, vazios sempre por preencher. E a fama, o reconhecimento, o brilho das luzes, os gritos histéricos e as palmas, os subscritores e os seguidores, os eventos e as idas à televisão são ‘a coca-cola no deserto’ pronta a resolver estas sedes tão dramaticamente vividas durante a adolescência.”

Com a lição inaciana evidentemente bem estudada, o Zé Maria apelava a que soubéssemos educar os nossos afetos, já que “sem horizonte, sem um fim que os transcenda, os afetos ficam dobrados sobre si mesmos, colados ao chão.”

Com a lição inaciana evidentemente bem estudada, o Zé Maria apelava a que soubéssemos educar os nossos afetos, já que “sem horizonte, sem um fim que os transcenda, os afetos ficam dobrados sobre si mesmos, colados ao chão.”

Para responder a estas sedes, o Zé Maria remetia-nos para a Meditação das Duas Bandeiras que se encontra no coração dos Exercícios Espirituais. Somos confrontados com a necessidade de escolher uma de duas bandeiras: a do “inimigo da natureza humana” ou a de Jesus, que “se põe (…), em lugar humilde, belo e gracioso”, tal como tantos que o Zé Maria terá contemplado na infinitude dos campos do Alentejo.

Reconhecendo os instintos enganosos que parecem satisfazer a sede, mas que acabam sempre por agravá-la – o possuir, o parecer e o poder –, Santo Inácio contrapõe-lhes os valores da bandeira de Cristo, “sumo e verdadeiro capitão” na batalha de todos os dias, travada em cada decisão, entre o bem e o mal: diante do possuir, a pobreza; frente ao parecer, a humildade; em resposta ao poder, o serviço.

Ser pobre não é desejar a miséria que nega a humanidade. É não nos agarrarmos às coisas como se delas dependesse o que somos, como se a marca dos sapatos nos desse estatuto e importância. É descobrir que os afetos não se compram, nem se vendem. São de graça e não se confundem com nenhum ‘like’.

Ser humilde não é ter medo de se olhar ao espelho, desprezar e desvalorizar o que se é. Ser humilde é agradecer o que se é como um dom. Aceitar limites e reconhecer talentos sabendo que uns e outros são caminho para sair de mim, para me dar e abrir aos outros.  Ser humilde é colocar-se no lugar, cortar o nariz e desfazer o olhar altivo, de rei na barriga, cheio de certezas e falsas seguranças.

Servir não é apenas pegar na esfregona para limpar o chão. Limpar o chão só é verdadeiro serviço se é feito para bem da comunidade. Servir é compreender que não existimos para nós próprios, mas para os outros, para com os outros colocar a vida ao serviço de um mundo mais justo, em que cada pessoa possa experimentar-se amada e receber o que lhe permite viver com dignidade.”

Depois de os definir existencialmente, o Zé Maria aplicou estes valores às carências constitutivas do humano, sintetizando: “A pobreza permite-nos acolher e comunicar afeto. A humildade coloca a nossa confiança no lugar certo. O serviço faz-nos encontrar sentido para a vida.”

Se virmos bem, tanto o Zé Maria como Santo Inácio souberam traduzir para a sua época, em fidelidade criativa, os valores que Cristo viveu e anunciou, aquela vida nova que se entrega livremente para gerar vida em abundância.

Se virmos bem, tanto o Zé Maria como Santo Inácio souberam traduzir para a sua época, em fidelidade criativa, os valores que Cristo viveu e anunciou, aquela vida nova que se entrega livremente para gerar vida em abundância.

Fácil para nós é hoje reconhecer na vida e na missão do Zé Maria um homem desapegado e despojado, porque livre para se deixar enviar; um homem humilde, porque consciente da sua fragilidade e disposto a vivê-la em benefício de outros; um servidor da missão de Cristo, gastando-se totalmente pelo Evangelho, aonde quer que fosse enviado.

Mais exigente será aplicar estes valores ao passado e ao futuro da nossa Democracia, partindo do célebre lema do MFA – Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Ainda assim, em memória do Zé Maria, e honrando o seu legado apostolicamente político, arriscarei esboçar algumas pinceladas sobre o nosso passado e o nosso futuro enquanto Democracia cinquentenária, à luz do seu testemunho. Embora me reconheça pequeno aprendiz, tendo metade da idade da Revolução, homenageio assim um companheiro que conheci no primeiro campo de Campinácios que fiz, com apenas 12 anos, em 2011. Importa dizer que a reflexão que desenvolverei não pretende veicular as opiniões do P. José Maria, antes, pretende tomar o seu legado como mote para repensar o passado e o futuro do nosso país. Acima de tudo, agradeço o exemplo simples e a palavra interessada com que ao longo dos anos o Zé Maria me fascinou para essa arte de ser, como jesuíta, um cristão democrata.

 

Desenvolver (pobreza)

[passado]

Dos primeiros 50 anos de Democracia, sobressaem como antagónicos os movimentos de nacionalização e reforma agrária que foram motivados pelo PREC, por um lado, e o movimento de integração europeia (p.e., com a adesão à CEE e à União Europeia) e de desenvolvimento industrial e económico que se viveu em Portugal até à adoção do Euro, por outro. Nesse sentido, é justo reconhecer que o 25 de Abril deve ao 25 de Novembro a sua consolidação democrática e o ímpeto reformista que permitiu ao país crescer estruturadamente, em liberdade, até ao final do século XX. Por outro lado, desde o início do século, o cenário de convergência em termos de crescimento económico em relação à média europeia deu lugar a uma preocupante divergência. Este fenómeno explica-se, segundo a análise do economista Ricardo Santos, mais do que pelas contingências próprias de sermos um país pequeno e periférico, pelo facto de que Portugal “deixou de ser produtivo e de investir”, sendo particularmente notória a “falta de reformas e de incentivos à concorrência e ao investimento”. Se o regime não encontra formas orgânicas e integradas de pôr a Economia a crescer, corre o risco de converter a desilusão económica em ainda maior descontentamento político. Sem geração de riqueza, não “há liberdade a sério”, pois o justo sonho de Abril consagrado por Sérgio Godinho em “paz, pão, habitação, saúde e educação”, para todos e com qualidade, ficará mais distante.

Se o regime não encontra formas orgânicas e integradas de pôr a Economia a crescer, corre o risco de converter a desilusão económica em ainda maior descontentamento político. Sem geração de riqueza, não “há liberdade a sério”, pois o justo sonho de Abril consagrado por Sérgio Godinho em “paz, pão, habitação, saúde e educação”, para todos e com qualidade, ficará mais distante.

[futuro]

A pobreza evangélica repudia a miséria, bem como o materialismo da cultura da acumulação e do descarte. Antes, promove a criatividade de se saber adaptar as circunstâncias, de com pouco fazer muito, e de saber partilhar voluntariamente com aqueles que têm menos.

Para os próximos 50 anos, seria interessante não só pôr os meios para que esta recuperação económica seja estratégica, estrutural e o mais possível independente dos ciclos eleitorais, mas sobretudo fazê-lo tendo em conta critérios ecológicos e sociais que iniciativas como a Economia de Francisco têm vincado, no sentido de humanizar integralmente a Economia. Isto implica tomar decisões exigentes e potencialmente impopulares, por exemplo, quanto à tributação e à sustentabilidade dos sistemas de Segurança Social. Porque não promover esta mudança de olhar na Europa, liderando uma postura ambiciosa e humanista, que olha para o combate às desigualdades, para a justiça face às gerações futuras e o cuidado dos recursos naturais como prioridades políticas, sem descurar a necessidade de convergência?

 

Descolonizar (humildade)

[passado]

Se fica para a História ajuizar o modo e a ordem como se deu o processo de descolonização, sobressai como inegável a necessidade de reconhecer a autodeterminação dos povos que habitavam os territórios portugueses em África. Esta será sempre uma questão sensível de analisar, até pelas memórias dolorosas que evoca, mas entre o perpetuar da Guerra do Ultramar e a gestão doméstica da crise dos “retornados”, largar as colónias ao seu destino parece ter sido um exercício de humildade tardio, mas necessário. Tão necessário como acabar com a polícia política, a censura prévia, as limitações eleitorais ou de expressão.

[futuro]

Em vésperas de Eleições Europeias, e olhando o futuro de Portugal no contexto do Projeto Europeu, cabe-nos reconhecer com humildade o quão beneficiados temos sido, sucessivamente, em matéria de Fundos Europeus. E isto, sem sermos capazes de convergir estruturalmente com o bloco europeu. Infelizmente, como defende Nuno Palma no best-seller As Causas do Atraso Português, a cultura de “torneira aberta” não tem ajudado o país a desenvolver-se, antes perpetua a mediocridade, a falta de iniciativa privada e a dependência externa. Será que, nas próximas décadas, apertar a regulação ao uso dos dinheiros da Europa bastaria para inverter o panorama, ou, em alternativa, a Integração Fiscal entre Estados membros, à imagem dos Estados Unidos, seria um remédio mais decisivo? Parece fundamental estudar o papel que poderão ter a identidade e a cultura portuguesas, numa Europa de estados soberanos, solidários entre si e unidos num projeto maior. Sobretudo, diante deste contexto de perda de influência global da União Europeia e de agravamento da ameaça bélica.

Será que, nas próximas décadas, apertar a regulação ao uso dos dinheiros da Europa bastaria para inverter o panorama, ou, em alternativa, a Integração Fiscal entre Estados membros, à imagem dos Estados Unidos, seria um remédio mais decisivo?

Democratizar (serviço)

[passado]

Um olhar para os 50 anos já vividos de Democracia leva-nos, por um lado, a reconhecer um certo desgaste das instituições políticas, uma crescente abstenção e um preocupante descrédito nos padrões dos representantes políticos e dos funcionários judiciais. As eleições de 10 de março são um sintoma evidente deste estado de coisas: o partido afastado do poder por suspeitas de corrupção é francamente penalizado; o partido vencedor e tradicionalmente concorrente não consegue capitalizar o descontentamento com grande distância; e isto, porque a força alegadamente anti-sistema e anti-corrupção acaba por ir ao encontro da desilusão de muitos abstencionistas e de outros tantos eleitores defraudados nas suas escolhas. Que esta força consiga 50 deputados nos 50 anos de Abril é um sinal inequívoco de que os incumbentes, se quiserem manter a preponderância política, terão de se auto-criticar e reinventar.

[futuro]

Perspetivar mais 50 anos de Democracia é um exercício exigente, senão mesmo supérfluo. Como coordenadas a ter em conta, nesse movimento tão evangélico de converter o poder em serviço, seria interessante retomar os 3 valores que o P. Nélson Faria, SJ elencou para motivar a participação política dos jovens, no contexto do encontro Ponto de Cruz, em Braga, numa intervenção posterior ao término da gravação disponibilizada:

1) Nunca depender social e economicamente da política;
2) Nunca compactuar com o mal;
3) Tudo fazer com sentido de missão.

Honrar o legado evangelicamente pobre, humilde e servidor do Zé Maria é, por fim, exercitarmo-nos no ofício do diálogo, sabendo, como ele, construir e habitar aqueles lugares temperados de encontro com a diferença, sem perder o enraizamento nas próprias identidades. O Zé Maria foi, por convicção e vocação, um construtor de pontes, tanto na Política como na Igreja; mais do que um peão asseticamente situado num qualquer ponto médio entre extremos, foi um apóstolo radicalmente moderado; muito antes de um fervoroso opinador, foi um caridoso escutador. Saibamos nós, na nossa vida pessoal, cristã e política, tal como fez o Zé Maria, cuidar do diálogo como modo de proceder e percorrer esse caminho evangélico da pobreza, da humildade e do serviço.

Em Cristo, o caminho já é meta. Ergamos a Sua bandeira e caminhemos à Sua luz até essa meta gloriosa, que nos espera com um abraço ruidoso, mas que já nos vai alcançando através de tanto bem recebido e partilhado ao longo do caminho.

“O caminho é estreito demais para o meu ego,
Mas para me tornar numa criança
Eu tenho que ser sério.
Não é a estrada que se alarga,
Sou eu que me apequeno.
A passo de bebé eu vou marchar pelo Império.”

(“Império”, Samuel Uria)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.