“Imploro-te não abuses” de Patrick C. Goujon, quando um padre foi vítima de abuso

Com o relato de Patrick aprendemos que não falar, não assumir o abuso, a injustiça, leva a vítima a experimentar uma negação que, ao invés de apagar, intensifica a dor.

Chegou, finalmente, às livrarias portuguesas o célebre livro de Patrick Goujon. Publicado pelas Paulinas, Imploro-te não abuses contém o relato íntimo e corajoso de uma vítima de abuso sexual. Trata-se de um tema delicado que, aqui, é abordado de forma pessoal e comovente. A particularidade do relato é a vítima ser, neste caso, um padre. Com efeito, Patrick não se expressa apenas como vítima de abuso, mas também enquanto sacerdote jesuíta. É nessa qualidade que ele relê a sua história de vida. Não se descrevem propriamente os abusos, mas o processo de tomada de consciência de alguém que foi vítima e, para o assumir, precisou de tempo, muito tempo, e de muita ajuda.

Aos 48 anos, Patrick voltou à infância, nas suas experiências mais traumáticas, num momento em que a sua mãe se encontrava doente, todos os dias acamada à espera do seu telefonema. O relato toca-nos. É impossível que a sinceridade das suas palavras, tecidas num estilo poético, não nos afete. Sem pudor em apresentar a sua fragilidade, Patrick acaba por revelar imensa força. Afinal, assume a vergonha, o medo, a dúvida, o sentimento de culpa, a impotência em sofrer, de não perdoar. Mas tem a força para o dizer. No fundo, ele narra-se conosco. E, dessa forma, liberta-se.

Sendo vítima, e reconhecendo toda a injustiça que lhe infligiram, Patrick vive para além do ressentimento. E isso comove-nos. Não se fecha num ódio ressabiado. Nem exige que um justiceiro restabeleça a vida perdida. Pelo contrário, solta-se com arte conduzindo-nos, através das suas palavras, à reconciliação que vai fazendo com a sua própria história.

Sendo vítima, e reconhecendo toda a injustiça que lhe infligiram, Patrick vive para além do ressentimento. E isso comove-nos. Não se fecha num ódio ressabiado. Nem exige que um justiceiro restabeleça a vida perdida.

Foram muitos anos de negação. Sem se aperceber que tentava silenciar subconscientemente o trauma, o seu corpo acabou por gritar de dores. Não podia ser de outra forma, pois “a negação não esquece”, apenas “conserva” (p. 23). As dores físicas nas costas levaram-no a consultar inúmeros médicos. Sujeitou-se a sucessivas terapias, desde as que os reumatólogos aconselhavam até às soluções sugeridas pelos osteopatas. Dado o insucesso dos analgésicos e das massagens, acabou por tentar curar-se nas medicinas alternativas. E quanto às dores, essas continuavam. Os médicos não sabiam o nome da sua doença. Mas ele não se livrava das crises periódicas que lhe afetam os dias e o sono das noites.

Foi, então, que as dores físicas começaram a subir para os seus «lábios» (p. 10), não fossemos nós seres psicossomáticos. A ferida na sua alma afetava todo o corpo. Era isso o que estava a acontecer. Patrick foi compreendendo, pouco a pouco, que a cura só poderia resultar de um processo de articulação entre corpo, mente e história de vida.

A ferida na sua alma afetava todo o corpo. Era isso o que estava a acontecer. Patrick foi compreendendo, pouco a pouco, que a cura só poderia resultar de um processo de articulação entre corpo, mente e história de vida.

Foram fundamentais as palavras que um médico lhe proferiu: aquele «Cuida-te!» ia ressoando no seu coração (p. 19). E, assim, ele começou a viver a experiência de dor cada vez menos como um mero «paciente», para se tornar cada vez mais num «sujeito»: numa pessoa que procura não ter de se sujeitar a dores desproporcionadas. Despoletou, então, o processo de libertação.

O seu relato mostra-nos como a fragilidade humana não se desvanece com a força da coragem e da fortaleza, de quem não desiste em caminhar num processo de cura.  Com o seu livro, Patrick ajuda-nos a perceber que a denúncia não se faz apenas para castigar o abusador. Trata-se, sobretudo, de um passo fundamental no processo de reconciliação e de cura das dores psicossomáticas. Pessoas da sua confiança, muitas vezes ligadas à Igreja, não compreendiam por que razão ele desejava, a dado momento, falar, denunciar, apresentar queixa. Depois de tantos anos, pensavam que talvez fosse melhor pôr uma pedra sobre o assunto, e seguir em frente… Mas fugir à realidade da sua história não o ajudava a libertar-se da mágoa, do rancor, do sofrimento.

Com o seu livro, Patrick ajuda-nos a perceber que a denúncia não se faz apenas para castigar o abusador. Trata-se, sobretudo, de um passo fundamental no processo de reconciliação e de cura das dores psicossomáticas.

Com o relato de Patrick aprendemos que não falar, não assumir o abuso, a injustiça, leva a vítima a experimentar uma negação que, ao invés de apagar, intensifica a dor. Uma vez cometido o abuso, é preciso reconhecê-lo. Uma vez feita a injustiça, não podemos viver a fazer de conta que nada foi, e já passou. Não passou. Está lá. E, por isso, convém falar. Não esqueçamos o que Patrick nos diz: «o que sofria nas minhas costas subiu para os meus lábios.» (p. 10)

Nesse sentido, notamos como foi importante, para Patrick, ter percebido que outras pessoas também tinham sido vítimas do mesmo padre. É estranho, mas ele sentiu alguma alegria e paz quando lhe descreveram experiências semelhantes à sua, perpetradas pelo mesmo abusador. Afinal, havia uma comunidade de vítimas da qual ele fazia parte. Terminou, assim, o medo do trauma ser fruto da imaginação de uma memória antiga, que aquela criança nunca quis ter. Quando alguém lhe disse que o tal padre, cujo nome Patrick não proferia sem gaguejar, era mesmo pedófilo, aí ele compreendeu: «Não estava a delirar (…) Eu estava certo.» (p. 29)

A consciência de ter sido vítima de abuso sexual foi-se ganhando, progressivamente, com o conforto de amigos e também com a surdez de algumas esferas eclesiais. Patrick acabou por perceber que, «se a culpa é apenas do agressor, a responsabilidade é eclesial.» (p. 77)

Contudo, reconhece que o respeito pelos procedimentos canónicos nunca é suficiente. Embora a observância de regras claras, justas e transparentes seja importante para que as decisões não fiquem sujeitas à arbitrariedade dos superiores hierárquicos, é preciso adotá-las numa abertura à particularidade de cada pessoa. Neste aspeto, o relato de Patrick promove a empatia pessoal não só com o leitor, mas também no tratamento destas questões pelas autoridades competentes. É interessante perceber, neste contexto, como a vítima, ao assumir hoje cargos de responsabilidade, tende a sentir uma «raiva desproporcionada» perante a incapacidade de evitar injustiças que todos nós vamos assistindo nas instituições, limitadas e finitas, deste mundo – e desta Igreja (p. 22).

Por último, pode-nos surpreender aquela que talvez apareça como a grande particularidade deste relato: quem foi vítima em criança de um padre é, hoje, um sacerdote jesuíta. É compreensível o espanto do inspetor da polícia, depois de acolher o relato: «E, no entanto, você hoje é padre. Como é possível?» (p. 59) Patrick levou a questão a sério. Tem-na rezado até aos dias de hoje. O seu relato dá-nos a sensação de estarmos diante de alguém que, desde muito cedo, deseja viver como Jesus: uma vítima que se recusa entrar na lógica da violência. Abrir os braços na cruz é amar sem possuir. Esse amor, Patrick quer vivê-lo no seu celibato. É assim que ele se vai curando.

Tem-na rezado até aos dias de hoje. O seu relato dá-nos a sensação de estarmos diante de alguém que, desde muito cedo, deseja viver como Jesus: uma vítima que se recusa a entrar na lógica da violência. Abrir os braços na cruz é amar sem possuir. Esse amor, Patrick quer vivê-lo no seu celibato. É assim que ele se vai curando.

Patrick reconhece não ter o poder do perdão. Pede que Deus lhe conceda essa graça. Não nega a sua ferida. Nem se cala dela. Talvez seja esse o preço da alegria e da verdadeira liberdade.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.