A resposta da Igreja Católica à crise dos abusos sexuais, no decorrer do Relatório da Comissão Independente em fevereiro de 2023, revelou um conjunto de tensões de cariz eclesiológico tanto no seu interior, como no modo como ela se posiciona face ao mundo e é vista por ele. Uma das tensões de fundo em todo este processo, e ficamos só por esta, relaciona-se com o modo de compreender a natureza das relações dentro da Igreja. A grande maioria das pessoas, e a sociedade no seu conjunto, não tem presente a teologia da Igreja particular, nem a noção eclesiológica de Povo de Deus. Por isso, pensa a Igreja segundo modelos piramidais, hierárquicos e empresariais. Segundo esta visão, a Igreja deveria ser uniforme e homogénea; nela todos deveriam pensar igual, dizer o mesmo e fazer do mesmo modo. Se é certo que, à luz de uma eclesiologia de comunhão, se deve procurar na Igreja o consenso entre agentes (ministérios) e níveis de atuação (Igreja universal-Igreja particular-Agrupamentos regionais, etc.), o consenso eclesial, por si mesmo, é tensional, caracterizando-se pela unidade na pluralidade e pela comunhão na diversidade.
Para se compreender melhor esta tensão e as suas implicações, recorro à metáfora esfera-poliedro utilizada recorrentemente pelo Papa Francisco. Embora seja utilizada, com maior frequência no contexto de uma crítica a uma determinada visão da globalização que, em nome da uniformidade, tende a destruir a singularidade (cf. Fratelli tutti 100), o binómio esfera-poliedro pode ser aplicado a qualquer realidade comunitária e, com particular relevo, também à Igreja.
A figura geométrica da esfera caracteriza-se como uma sequência de pontos alinhados em todos os sentidos. É uma superfície fechada cujos pontos estão todos à mesma distância do centro. O movimento de rotação da esfera permite ver sempre o mesmo, bastando o conhecimento de um único ponto para ter o conhecimento do todo, pois nenhum acrescenta nada ao outro. De acordo com esta imagem, tende-se a ver a Igreja como uma realidade monolítica e monocromática, onde tudo é orientado a partir de um único centro numa estrutura hierárquica daí derivada.
Designam-se poliedros (muitas faces) as figuras geométricas tridimensionais formadas pela união de polígonos regulares que dão origem a diferentes elementos (vértices, arestas e faces). Para o Papa Francisco «o poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças.» (cf. Fratelli tutti 215) Não eliminando as tensões, o poliedro permite manter numa relação profícua o particular e o universal, o todo e a parte. A Igreja é compreendida como diversidade na unidade, onde o todo do corpo eclesial é enriquecido pelo contributo diferenciador de cada um dos seus membros.
Voltando à questão da resposta da Igreja católica à problemática dos abusos sexuais, poderemos cair na tentação da esfera: tudo igual e uniforme, com os mesmos agentes e respostas únicas. Em nome do bem maior que são as pessoas, as respostas da Igreja à crise dos abusos sexuais, sobretudo, no que diz respeito à consciencialização do problema, a mecanismos de prevenção e à formação dos agentes pastorais merece e requer um paradigma poliédrico.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.